119 dias e mais de 1 milhão de mulheres
Joyce Luz, Graziella Testa e Luiz Soares.
119 dias. Esse foi o período de afastamento que a Assembleia Legislativa de São Paulo considerou ser uma punição proporcional ao ato de assédio e importunação sexual a outra deputada, ato este filmado e transmitido em tempo real e que ocorreu durante uma sessão deliberativa no Plenário da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. No Plenário. Durante a sessão. Filmado. Registrado.
O ato do Deputado Fernando Cury, do Cidadania, foi tido como doloso e culpável pela comissão. Não há, portanto, uma questão ou dúvida quanto ao que ocorreu. O que há é um corpo de representantes homens eleitos que entende que esse tipo de ato deve ser condenável, porém não à nível tão grave quanto outras coisas. Não é tão grave, por exemplo, quanto sanção imposta a gravidez de uma parlamentar que escolha gozar de sua licença maternidade. Isso porque caso essa deputada opte por tirar mais de 120 dias de licença para cuidar de seu filho(a), ela precisará levar em conta a demissão de sua equipe e a parada por completo das atividades do mandato que, como sabemos, não se resume às sessões parlamentares.
Quando uma mulher é assediada no seu local de trabalho, engana-se quem pensa que isso se resume a uma questão de desejo ou ou atração sexual. Isa Penna, do PSOL, foi tocada sem seu consentimento no seu local de trabalho. E a Assembleia Legislativa sinalizou para todas as mulheres e homens do estado de São Paulo que isso é algo reprovável, porém aceitável assim como em tantos outros ambientes ocupados por mulheres. Mas o que poucos parecem entender é que uma mulher quando assediada na esfera pública, ou em qualquer outro ambiente, está sendo coagida a não ocupar esse espaço, a se reduzir ao que um homem pensa que ela deveria ser.
Se uma deputada eleita que sofre importunação sexual não vê seu agressor punido pelo que fez, por que uma servidora da assembleia denunciaria seu agressor? Por que uma vendedora denunciaria seu colega? Por que uma cientista ou uma aluna que são assediadas pelo seu professor fariam uma denúncia que poderia evitar outras violências? Por que uma faxineira denunciaria seu patrão? Por que uma jovem denunciaria seu padrasto/tio/pai/avô? Por que uma esposa denunciaria seu marido?
O presidente da ALESP, Carlão Pignatari (PSD), garantiu que o gabinete do Deputado Fernando Cury será dissolvido, em resposta à questão de Ordem do Dep. Barroz Munhoz (PSB), porque se trataria de uma “perda temporária do mandato” e não “afastamento”. Não há previsão regimental para o instituto da perda temporária, o que soa uma contradição em termos, porém esse tipo de arranjo não é incomum em câmaras e assembleias. Mesmo que se concretize a dissolução temporária do gabinete do Deputado, isso significa que nossos representantes estão afirmando que na Assembleia Legislativa de São Paulo é tão grave o crime de uma deputada engravidar, quanto o de um deputado assediar e importunar sexualmente uma colega parlamentar.
Em uma casa legislativa com apenas 11 mulheres Deputadas Estaduais, frente a 83 homens Deputados, mais uma vez presenciamos homens calando a voz e permitindo a agressão de mulheres, de figuras públicas, que carregam em suas mãos a representação e o potencial de transformar minimamente a realidade brasileira que tem mais mais de 536 mulheres agredidas por hora[1]. O que representa um total de 1.530.816 mulheres vítimas de abuso sexual no prazo de 119 dias no Brasil.
O Legislativo é o maior símbolo da representação política democrática, é o espaço da deliberação conjunta que resultará no consentimento que sustenta a legitimidade dos Estados. Não há nada maior e mais poderoso que represente nossa sociedade e sua pluralidade do que o Legislativo. Para o bem ou para o mal.
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[1] Dados da pesquisa realizada em 2019 pelo Datafolha para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.