Luciana Santana

Desde que o resultado do plebiscito chileno foi aprovado no dia 25 de outubro, o atual líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP/PR), tem defendido a proposta de um plebiscito para elaborar uma nova Constituição para o Brasil. O tema fez parte de seu discurso no evento organizado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional e seus argumentos se apoiam na ideia de que a Constituição de 1988 deixou o “País ingovernável” em referência à baixa capacidade orçamentária e fiscal no Brasil.

O deputado federal, que está em seu sexto mandato na Casa, é ex-ministro da saúde do governo de Michel Temer (MDB) e, recentemente, foi alvo de investigações do Ministério Público Federal. Além de justificar a proposta balizada pela situação fiscal do país, apresentou outros argumentos para defender sua proposta, um exemplo foi citar que a Constituição em vigor provocou desequilíbrio entre os Poderes, outorgando mais poder aos juízes e promotores. Alega ainda que na Carta Magna há mais direitos previstos do que deveres a serem cumpridos pelos cidadãos brasileiros.

Não que o tipo de proposta seja algo inédito no país, pois de tempos em tempos, e a depender da direção do sopro dos ventos no cenário político, algo similar vem à tona. Contudo, não é objetivo deste texto mapear os políticos que já ventilaram essa ideia, mas discorrer sobre a incoerência presente nos argumentos do deputado ao ter como referência o plebiscito aprovado no Chile.

É certo que a proposta do parlamentar não tem, nem de longe, qualquer semelhança com as demandas que levaram à aprovação do plebiscito no Chile. Além de desconhecer as demandas chilenas para a aprovação do plebiscito no país vizinho, o deputado parece desconhecer também a própria Constituição brasileira.

 

Constituição em vigor e plebiscito aprovado no Chile

Diferentemente da atual situação brasileira, o plebiscito chileno ocorrido no dia 25 de outubro de 2020 é fruto de pressões sociais no país. Em quase um mês, milhares de chilenos foram às ruas protestar contra leis vigentes e questionar o aumento da desigualdade social e concentração de renda no país.

A atual Constituição chilena data de 1980 e foi promulgada pelo ex-presidente Augusto Pinochet, ainda em um contexto permeado de autoritarismo e de baixa representatividade política e social nas decisões políticas do país. Como é sabido, o Chile foi o único país do Cone Sul no qual os militares participaram do processo de transição com a imposição de regras institucionais que prevaleceram durante a passagem e que permaneceram após a instauração do novo regime. Isso só foi possível porque houve apoio de parcela significativa da sociedade civil e a economia estava em trajetória ascendente no país.

Pois bem, essa Constituição sofreu alterações em 1989 e em 2005. A reforma constitucional de 1989 estabeleceu o pluralismo político, rechaçando a limitação imposta a partidos com concepções políticas marxistas, permitiram o aumento do número de senadores eleitos de 26 para 38. E durante o governo do ex-presidente Ricardo Lagos, nova reforma constitucional foi aprovada e, dentre as 58 emendas aprovadas, destaca-se a possibilidade de demissão de comandantes das Forças Armadas, a abolição do sistema de indicação de senadores biônicos e vitalícios e a redução do mandato presidencial de seis para quatro anos sem possibilidade de reeleição.

Embora essas modificações sejam consideradas avanços importantes, ainda são insuficientes para atender às demandas sociais dos cidadãos chilenos. Além de questionarem a legitimidade do texto, por não ter sido formulado em um contexto democrático, outras críticas recaem sobre o modelo neoliberal e acerca da ausência de políticas de estado capazes de combater a desigualdade social e econômica crescente no país.

A aprovação do plebiscito no Chile de 2020 não é das tarefas mais fáceis, devido aos múltiplos interesses envolvidos no processo de decisão e da acentuada polarização política no país. Todavia, o aumento dos protestos e mortes nas manifestações aceleraram o processo de negociação no âmbito do Parlamento chileno que conseguiu unir governo e oposição, e aprovar a consulta popular.

Além da aceitação da elaboração de um novo texto constitucional por 78,27% dos eleitores chilenos, definiram também que tipo de órgão deve escrever a nova Constituição. A decisão foi de que seria uma Assembleia Constituinte (Convención Constitucional), composta por 155 cidadãos, com paridade gênero e cota reservada para a população indígena, eleitos em sua totalidade pelo voto popular. A eleição que definirá quem participará da elaboração da nova Constituição ocorrerá no dia 11 de abril de 2021, com posse dos representantes prevista para o mês de maio. Já acordado no Parlamento, os trabalhos da Assembleia terão duração de 9 meses, podendo ser prorrogada por mais três meses.

 

O problema no Brasil não é ter muitos direitos

 Como apresentado anteriormente, as demandas dos chilenos são pela incorporação de direitos ao texto constitucional, ao contrário daquilo que o deputado Ricardo Barros questiona ter em excesso na Constituição brasileira. Apesar da afirmação de que direitos previstos na Constituição brasileira são entraves para o desenvolvimento do país e a causa dos problemas fiscais das contas públicas, é importante pontuar que, mesmo com todos os direitos na norma, temos um país muito desigual, com alta concentração de renda e de altas taxas de violência, e que voltou recentemente ao mapa da fome. Tais problemas não podem ser atribuídos ao texto constitucional, mas à ineficiência das decisões políticas de lideranças que estão no comando do país, seja no Executivo ou no Legislativo.

Diferentemente de outros países, muitas reformas ou mudanças constitucionais podem ser feitas no Brasil por meio de emendas (PEC). Recentemente foi aprovada a 108ª PEC que determina a instituição em caráter permanente do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Portanto, poucas são as exceções previstas como cláusulas pétreas, e que estão dispostas no artigo 60, § 4º da Constituição de 1988, a saber: forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais. E, se há problemas de governabilidade no país, o problema também não nos parece ser constitucional, mas de ausência de habilidade política para governar o país, construir apoios e articular um projeto que cumpra o propósito de desenvolver social e economicamente o país.

Pegar carona no plebiscito chileno é fácil, pois o discurso político carrega tudo e um pouco mais, até mesmo o desconhecimento e o uso de argumentos que não encontram evidências na realidade ou nos fatos. Difícil mesmo é escutar políticos que se mantêm por anos na política e querem ficar isentos de suas responsabilidades na atual situação do país.