Humberto Dantas

O almoço entre Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva é um gesto de resgate histórico relevante. Adversários pessoais, nunca foram inimigos. E já estiveram do mesmo lado, quando o terror comum era a ditadura e a causa maior era a instituição da democracia. Toda vez que aparecem juntos, algo maior parece fora de lugar. Pode ser no campo pessoal, como na viuvez de ambos. Mas tais males podem não ser privados, mas sim públicos.

São infindáveis as mostras de Bolsonaro e sua horda de fiéis contra a democracia. Legitimamente eleitos, estão no poder porque um processo legal que defendemos e louvamos foi seguido. E aqui está o pior agente da Democracia: aquele que se serve de suas regras para ganhar, ocupa o espaço e do seu interior ameaça a realidade quando sente que pode perder. Esses tipos perdem causas no Judiciário, gritam por fechá-lo, mas apelam para ele quando tremem de medo de uma CPI. Perdem tramitações no Legislativo, gritam por fechá-lo, mas constroem um orçamento oculto para aprovar certas causas ou porque tremem de medo de um impeachment.

Perdem popularidade, gritam pela rançosa Lei de Segurança Nacional, mas bradam assombros inconstitucionais e choram na cadeia quando vão presos. Assistem pesquisas eleitorais lhes desafiando a reeleição, gritam por uma desqualificação da urna eletrônica, mas faz décadas que se elegem rigorosamente pelo sistema vigente, incluindo o pleito de 2018. Perdem adesão dos meios de comunicação, gritam contra a liberdade de imprensa, mas passam horas pensando em estratégias subversivas atreladas ao mundo das fake news se tremendo quando investigações apontam para abusos nítidos nesse campo. É disso que estamos falando. De gente dissimulada, que não tem vergonha de surrar valores com a mesma toalha que limpa o próprio suor ou as próprias lágrimas.

Assim, a reunião de Lula e Fernando Henrique em nada tem a ver com qualquer questão ideológica. É um gesto de princípios e por princípios. Um aceno dos dois únicos sujeitos que governaram o país por oito anos de forma estável, cada um, e apesar dos pesares.

Mas bastou que a foto aparecesse para a grita geral varrer a internet, vinda principalmente de “dentro de casa”. Não sei se por culpa de minhas redes e algoritmos, mas o som do PSDB me soou mais alto. Estranho. Reclamam que FHC foi atacado pelo PT, mas a recíproca sempre foi verdadeira. Chiam que isso não faz bem a uma candidatura tucana em 2022, mas aqui dois pontos são essenciais. O primeiro: não existe candidatura muito viável no PSDB desde 2002, e nenhuma se mostrou assim até agora para 2022. Isso qualquer um sabe, percebeu e verificou. A mais palatável, à ocasião – à sua ocasião temporal – foi a de Aécio Neves em 2014, quando o partido percebeu que existia vida para além de São Paulo. Passou perto, mas perdeu. Mesmo com pedido infantil de recontagem de votos confessado a Joesley Batista e com um alucinado no Planalto dizendo, semana retrasada, sem apresentar provas, que a vitória lhe foi afanada. O segundo ponto: se o PT atacou FHC chamando seu governo de “herança maldita”, e isso é um problema, me pergunto onde estava o orgulho tucano nas campanhas de 2002 a 2010. Não faltam exemplos do quanto o PSDB se envergonhou de seu próprio governo e de seu mais célebre político. Assim, a legenda não pode clamar pelo monopólio das críticas e cobrar qualquer coisa de FHC. Em resumo: o partido não tem envergadura moral para lhe passar um pito público, em mais um gesto público pequeno.

Vamos adiante. Alguns reclamam, de dentro do PSDB, que Lula é ladrão. Que se trata de um corrupto. E que Fernando Henrique estaria se rebaixando. Certamente o gesto, nesse caso, não o levaria apenas ao nível do PT, mas também a pessoas do próprio ninho, a começar pelo já citado ex-governador mineiro. O almoço de ambos não discutia aspectos legais e jurídicos. Algo maior estava sobre a mesa: a Democracia, e histórica e conjunturalmente sobra moral para ambos representarem esse menu. Quem viveu os anos 80 entendeu bem o cardápio. E se o problema era a corrupção, partidariamente o que se tinha então era fartura para todos os lados. Do primeiro, os abafados escândalos dos governos paulistas, os incriminados ex-governadores do Paraná e de Goiás. Do segundo, as aberrações no plano federal. Mas não era isso o que estava sendo servido. O prato principal era a liberdade para que possamos apontar dedos, criticar e continuar nos dividindo entre PT e PSDB, por exemplo. Ou buscando, infinita e livremente, novidades que se mantenham fiéis à democracia.

Assim, se você está incomodado com o encontro, sinta-se à vontade. A verdade é que o brasileiro, em geral, está farto de PT “X” ou “E” PSDB faz tempo. Mas perceba que se afastar dessa polarização, algo possível e legítimo, nos levou pelo caminho errado do questionamento a valores universais como a Democracia, desembocando num governo desbocado e, ao mesmo tempo, ilimitado e limítrofe em seus gestos. Se PT e PSDB carregam consigo problemas agudos de corrupção, que à nossa frente surja o mais absoluto alvo de todas as nossas energias: a justiça. Quero continuar votando em políticos capazes de transformar o país como FHC e Lula fizeram. E para que isso ocorra, a despeito de PT, PSDB, Lula ou FHC, é essencial que a justiça exista.

A crise política no Brasil passa, faz anos, por ausência de justiça. Menos pela falta de leis, pois estas existem aos montes, e mais pela demanda por um corpo institucional menos corrupto, menos criativo, menos populista e menos convicto. Ou seja: mais honesto, mais responsável, mais republicano e mais correto. É disso que carecemos: de Justiça, com J maiúsculo e fundada sobre valores. Sob a boa justiça, a boa política. Sob a boa política, os bons debates, as boas polarizações e os bons partidos. E sob tais condições, o bom povo e a boa democracia. Sei que é pedir demais, mas nesse instante Lula e FHC fazem o que pensam ser correto. Mostram que inimigos unem adversários. Nesse instante, o petista tem mais a ganhar do ponto de vista de sua caminhada ao centro com desejos eleitorais, enquanto o tucano tem menos a perder porque se mantém absolutamente fiel à sua formação, aos seus valores, ao seu caráter e aos princípios que o norteiam. Não espere, de um acadêmico de sociologia e política dessa envergadura, outro gesto, a despeito de sua legenda e das brigas entre adversários. Viva a democracia. E que o almoço unido sirva, de alguma maneira, para nos garantir a chance de jantarmos separados.

Por fim, para quem bate no peito e diz que Bolsonaro NUNCA se renderia a um almoço desses, procure as fotos de seu périplo por Maceió na inseparável companhia de Fernando Collor de Mello faz poucos dias. A novidade mitológica realmente é capaz de nos mostrar o que representa de tão diferente. Mas desses dois nunca foi possível esperar algo.