Inércia congressual e ativismo judicial
Leon Victor de Queiroz
Em 1957, Robert Dahl publicou um artigo seminal sobre o papel da Suprema Corte dos Estados Unidos na elaboração de políticas públicas. James Madison, um dos criadores do sistema político norte-americano, já havia explicado o caráter político da Suprema Corte bem como a necessidade de enforcement para questões que ferissem a Constituição. Madison, que era contra um governo central forte, acabou por mudar de ideia ao longo de sua carreira, tanto como membro do Legislativo e tanto como Presidente dos Estados Unidos. Não apenas os escritos de Madison, mas o caso Marbury vs. Madison e outras centenas de análises posicionaram a Suprema Corte como uma instituição política.
No Brasil, Madison é praticamente ignorado nas mais de 1.200 faculdades de direito espalhadas pelo país. Há uma fixação inócua por Montesquieu, primeiro a sistematizar uma teoria sobre os três poderes. É irônico dar lugar a ele e não a Madison, pois a obra de Montesquieu (O Espírito das Leis) é de 1748, e retratava a divisão de poderes na monarquia britânica, ou seja, a divisão de poderes tão hermética se referia às relações da Coroa com o Legislativo e o Judiciário. Madison, juntamente com Hamilton e Jay, publicou em 1788 os artigos federalistas, dentro de uma lógica republicana, e citou o próprio Montesquieu, para quem “dos três poderes, o Judiciário é quase nada”. Partindo dessa citação crítica, Madison passa a explicar a importância do Judiciário para a arena político-decisória, principalmente a Suprema Corte. Já em 2000, na Harvard Law Review, Bruce Ackerman publica A Nova Separação de Poderes, onde reflete sobre os problemas de paralisia decisória do modelo dos Estados Unidos e o perigo da legiferância plena (capacidade de governar sem limites) do modelo do Reino Unido. Em todas as suas reflexões, resta latente a importância do Judiciário dentro dos três poderes.
Todo esse debate é ignorado no Brasil, onde vigora a obsessão por Montesquieu, a psicose por um hermetismo ignóbil onde cada poder faz as suas tarefas sem interferir no outro. Isso não faz o menor sentido. Muitos manuais de Direito Constitucional falam em funções típicas e funções atípicas dos três poderes. Vamos lá: O Legislativo teria a função típica de legislar e atípica de julgar (cassação de mandatos, impeachment) e atípica de administrar (autogestão do próprio poder). Já o Executivo teria função típica de administrar e atípica de julgar (tribunais administrativos) e atípica de legislar (decretos regulamentadores, portarias, etc.). Percebeu que exclui Medidas Provisórias? A capacidade de o Executivo produzir norma com força de lei e eficácia imediata se encaixa na definição de função atípica? Impossível. A Constituição de 1988 renomeou o Decreto-Lei, que vigorou em tempos autocráticos, onde o Executivo era mais forte que os demais poderes. Ora, se o Executivo brasileiro tem função legislativa, quem faria frente? Quem teria papel de freios e contrapesos? O Judiciário teria função típica de julgar, atípica de administrar (autogestão da Corte) e atípica de legislar (elaboração de seu regimento interno). É nesse ponto que começa a celeuma do ativismo judicial, argumentando-se que o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral não deveriam interferir nas normas produzidas pelo Executivo e Legislativo. Entretanto, o sistema político brasileiro é uma cópia do norte-americano, e isso se deve a Ruy Barbosa que idolatrava o modelo de Madison, e o copiou sem maiores reflexões. Essa cópia veio no bojo da Constituição de 1891 e de lá para cá variantes foram sendo implementadas.
Se nos Estados Unidos o controle de constitucionalidade (judicial review) nasceu do caso Marbury vs. Madison, ou seja, a própria Suprema Corte dos Estados Unidos criou o controle que ela mesma iria exercer, no Brasil não precisamos ir tão longe, a própria constituição republicana de 1891 já dizia que o nosso STF tinha poderes de declarar inconstitucionais atos normativos dos demais poderes e das demais esferas da União. Mas, da mesma forma a revisão judicial evoluiu nos EUA, ela evoluiu também no Brasil ao incorporar a revisão judicial de Hans Kelsen, o famoso controle abstrato de constitucionalidade, mas fizemos errado. Kelsen nos intensos debates com Carl Schmitt se recusava a aceitar que o controle abstrato fosse exercido pelo Judiciário, e sim por uma Corte Constitucional alheia à magistratura, composta por políticos, não por juízes. Se em 1891 trouxemos a cópia fiel dos Estados Unidos, em 1988 alteramos o sistema kelseniano e ignoramos totalmente as suas preocupações, centralizando no STF dois modelos de revisão judicial, o forte modelo dos EUA e o que seria o meio termo entre não ter revisão e implementar o modelo norte-americano que é o modelo kelseniano. Lijphart, um dos maiores comparativistas da Ciência Política internacional argumenta em seu livro “Modelos de Democracia” que o debate do controle abstrato era buscar o meio termo entre não ter o forte modelo dos EUA e não ter controle algum.
Com a junção única no mundo dos dois modelos, o Brasil criou a mais poderosa Corte no plano doméstico em perspectiva comparada. Logo, ler Montesquieu e ignorar James Madison, Hans Kelsen, Carl Schmitt, Bruce Ackerman, dentre outros, não ajuda em nada a entender a dinâmica dos três poderes no Brasil, criando um discurso repetitivo, cansativo e inócuo, uma espécie de marreco demenciado.
Em qualquer sistema republicano o Legislativo é a maior fonte de poder, pois é considerado A Casa da Democracia, é o poder mais plural que representa a população. É a síntese do governo representativo, é por ele que passam todas as discussões do Executivo (no exercício do seu poder de veto ao engavetar as propostas do Presidente) bem como as discussões do Judiciário, não apenas pelo poder de engavetar suas propostas, mas também porque é o Senado quem decide quem compõe a Suprema Corte. Dessa forma, dentro da lógica dos freios e contrapesos, o Congresso Nacional é o maior freio, o maior óbice a qualquer tentativa de burlar as regras democráticas, seja através da inovação institucional, seja através dos discursos políticos e incitações à população.
A Ciência, que poucos conhecem, mas que veio ao centro do debate de mesa de bar em função da devastadora pandemia da covid-19, é mal interpretada e mal compreendida. E se ninguém lê Madison e Ackerman, o que dizer de Karl Popper (A Lógica da Pesquisa Científica), Thomas Kuhn (A Estrutura das Revoluções Científicas) e Alan Chalmers (O que é ciência afinal?)?
Todo esse prólogo para chegar ao problema central: elaboração de uma nota técnica do Ministério da Saúde, ignorando todas as pesquisas científicas que comprovam a eficácia da vacina contra covid (agora mais que comprovada pelos dados mundiais que mostram queda abrupta no número de mortes quando comparado com os dados de contágio) e a mentira de que a Hidroxicloroquina funciona para tratar contaminados. Mentira porque pesquisas de desenho científico experimental (na qual um grupo recebe o medicamento e outro não, e se compara o resultado de ambos os grupos), que é o padrão ouro na ciência, já mostraram que tal medicação não possui eficácia contra covid. Qualquer profissional com treinamento científico (lembrando que a Ciência é universal, então o treinamento científico é o mesmo para médicos e cientistas políticos, mudando apenas as variáveis, forma de coleta de dados, etc.) é capaz de entender que vacinas funcionam, cloroquina não. Dessa forma, era de se esperar que o Congresso Nacional solicitasse a demissão do Ministro da Saúde. Vamos voltar ao Reino Unido. O Primeiro-Ministro Boris Johnson tem ido ao Parlamento britânico pedir desculpas por ter dado festas durante o período de lockdown, quando toda a população estava confinada. Para os britânicos isso é ultrajante. Imaginem o que aconteceria se o ministro da saúde inglês divulgasse nota técnica dizendo que vacinas não funcionam? Voltemos ao Brasil. O Congresso ficou totalmente inerte diante do descalabro na Saúde. O silêncio foi quebrado pelo partido Rede Sustentabilidade, que entrou com ação no Supremo Tribunal Federal para derrubar a nota, e pedir o afastamento cautelar do Secretário responsável pelo documento. Ativismo judicial?
É difícil manter a calma dentro de um avião que está em rota de colisão e sem pilotos, porque o único piloto presente na aeronave não é daquela Companhia Aérea, e, portanto, não pode pilotar o avião. Está na hora de revermos a nossa concepção de relação entre os três poderes, entender que a inércia gera o ativismo, e que ele não é de todo ruim, a depender da situação. É preciso rever os manuais, parar de copiar instituições estrangeiras e pensar em como podemos resolver nossos problemas.