Não tem povo na “Casa do Povo”
Hannah Maruci
Algo que sempre me chama a atenção quando vou à Brasília e que faço questão de ressaltar quando dou aulas sobre o Congresso brasileiro é a sua arquitetura. A Câmara dos Deputados como um prato aberto ao céu, representando o povo. Em contraste com o Senado, voltado para si mesmo e virado para baixo, representando os estados. Em teoria, a Câmara dos Deputados é aberta à entrada de todas e todos, que podem acompanhar as tramitações legislativas, se manifestar, entrar em contato direto com parlamentares e seus gabinetes. Mas quantos desses direitos são efetivamente exercidos pelos cidadãos e pelas cidadãs? Ou ainda: a população sabe que possui esses direitos?
Minha resposta a essas perguntas sempre foi “não, a maioria da população nem faz ideia de que pode entrar na Câmara”. Mais do que isso, se sente intimidada pela arquitetura imponente – a mesma que busca traduzir a suposta abertura da casa – e pela formalidade do ambiente. Soma-se a isso a falta de representatividade: o povo não tem a cara dos representantes da “Casa do Povo”. E se a população não se vê lá, como ela poderá imaginar que ali é um lugar em que ela é bem-vinda?
Com o abrandamento da pandemia e a vacinação em massa, voltei pela primeira vez depois do início de 2020 à Brasília, com o intuito de acompanhar a tramitação de uma PEC que colocava em risco os direitos políticos de mulheres e pessoas negras (a então PEC 18/21 e atual EC 117/22). Estivemos lá as duas diretoras d’A Tenda das Candidatas em duas ocasiões para fazer uma incidência legislativa contra essa PEC. Para além dos fatos estruturais, como a comissão ser composta pela maioria de homens brancos decidindo sobre os direitos de mulheres e pessoas negras, o que nos chamou mais a atenção em nossas duas idas foi a triste constatação de que, mais do que nunca, não há povo na “Casa do Povo”.
Os protocolos adotados em razão da pandemia parecem ter se transformado em obstáculos fixos à entrada da população, o que pude perceber desde a tentativa de entrada. Ao chegarmos, fomos surpreendidas pela informação de que só poderíamos entrar se tivéssemos um convite formal de algum parlamentar, que nos forneceria um QR Code para possibilitar nossa entrada. “Mas nós viemos acompanhar uma matéria legislativa que diz respeito à população!”, ao que nos responderam que são “os novos protocolos da pandemia”. Depois de alguns minutos em contato com o gabinete de parlamentares aliadas à luta pelos direitos das mulheres, conseguimos a autorização para a entrada.
Surpreendentemente, apesar de toda suposta preocupação com a segurança sanitária, internamente as pessoas circulavam sem máscaras, não havia nenhum controle sanitário ou imposição de distanciamento. Ficou evidente que a pandemia está sendo usada descaradamente por um governo negacionista para impedir a entrada do povo nos ambientes políticos institucionais. Enquanto isso, as comissões que decidem sobre questões que têm impacto direto na vida da população estão esvaziadas – não apenas da população, mas também de parlamentares -, os relatórios são publicizados em cima da hora e não há nenhuma tentativa de comunicação com a sociedade sobre temas de grande importância.
No site da Câmara, consta como uma de suas três funções a de “representar o povo brasileiro”. No entanto, parecemos estar cada vez mais distantes desse objetivo.
Créditos da imagem: Câmara dos Deputados