Humberto Dantas

Ausência de decisão também é decisão. Silêncio também é resposta. Nesse segundo caso há ditado que afirma que falar é prata, calar é ouro. Ainda assim, certos espaços deixados pela inação findam gerando resultados ameaçadores. É nesse instante que chegamos. Pois a aparente ausência de um, tem gerado a presença exagerada de outros.

Já escrevi aqui, em agosto de 2020, e me mantenho fiel a cada linha redigida, que o Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, e dos parlamentos em enorme medida nesse país, são verdadeiras falácias institucionais. A “ética da malandragem”, título de livro de Lúcio Vaz, daria espaço, para atenuar o teor crítico das histórias relatadas pelo jornalista, à “ética do corporativismo” para falarmos de outro fenômeno. E lembremos: a defesa das corporações é uma das gramáticas que caracterizam de forma mais nociva a lógica das relações Estado x Sociedade no Brasil, de acordo com teoria de Edson Nunes. Ademais, para alguns pensadores, o termo “classe política”, numa democracia representativa, nunca poderia existir, pois a política é a arena da multiplicidade de “classes” e diversidades, e não pode, assim, caracterizar-se como uma classe uniforme. Para isso dar certo, então, políticas e políticos precisam se guiar pelas máximas éticas, pelos valores mais edificantes de uma sociedade. Isso passa longe de se tratar por “nobre”, como gostam os parlamentares, mas passa perto de justificar a existência de um Conselho de Ética que zelasse por valores minimamente universais ou desejados em uma sociedade que se pretende republicana. Isso definitivamente não ocorre. Muita coisa em termos de valores é relativizada dentro dos parlamentos, a começar pelos princípios mais gerais da sociedade. Mas como pensar numa casa do povo que flexibiliza valores do senso comum? Ao menos alguns dos elementos mais essenciais atrelados à lógica republicana? Eis o problema.

A primeira solução para isso é um tanto quanto ousada, soa destrambelhada e provocativa: se os parlamentos são a casa do povo, os Conselhos de Ética não deveriam ser formados pelo próprio povo? Alguns vão dizer: mas são. Os deputados e vereadores são o povo incorporado em mandatos. Sim, entendo, mas eles se veem como classe, e dessa forma parece bastante difícil imaginar que se julguem, punam, critiquem, corrijam e analisem à luz de valores universais. O que esperar? Que se meçam com suas próprias réguas. Sim! E você pode insistir: se eles nos representam, as réguas serão as nossas. Não. Infelizmente, os políticos se apartaram, se distanciaram, se entendem, aos olhos de grandes parcelas da sociedade, alheios a nós mesmos. Se comportam à margem e precisam de limites – e nada de chamar eleição de julgamento quadrienal, pois mandato não é voucher para o cometimento de aberrações em tal período de tempo.

Assim, o que defendo de forma absurda aqui: uma vez apresentadas representações contra deputados federais, por exemplo, no Conselho de Ética da Câmara, o colegiado será formado por pessoas inscritas LIVREMENTE – a despeito de OAB, de religiosos etc. que NÃO terão vagas cativas – e convocadas por meio de SORTEIO, para que apreciem e julguem TODOS os casos. Se no Judiciário o júri popular julga dessa maneira, me parece absolutamente razoável que no Legislativo isso se torne ainda mais legítimo e capaz de frear ímpetos e absurdos. Não?

Entendo que sim, mas leve tudo isso como uma grande provocação. Agora volte no texto do link que deixei acima e diga: o Conselho de Ética da Câmara te representa? Talvez sequer o Parlamento lhe dê essa sensação. Paciência. Voltemos aqui: onde não se julga, onde se deixa o vazio, o que fazer? Pois bem. Se para muitos o “não agir” é uma ação, para o ativismo da magistratura brasileira isso não existe. E agora?

O Supremo Tribunal Federal, cada dia mais, se entende como o preenchedor dessas lacunas, sobretudo nas ausências do Legislativo. Está certo? Não. Se Daniel Silveira, um assombroso deturpador da ordem democrática, utiliza-se de sua liberdade parlamentar para proferir os absurdos que oferta, temos aqui um problema LE-GIS-LA-TI-VO. E se isso for mentira, que o Judiciário comece a atuar sobre TODOS, e não apenas sobre algumas das aberrações. Isso é possível? Nunca.

Assim, o povo insatisfeito deve ir para a frente do Parlamento pedir punições. Nunca o Judiciário deve ser o agente, sobretudo porque os ataques do parlamentar foram, predominantemente, contra o próprio Judiciário. E aqui fica absolutamente nítido que a justiça se protege a níveis corporativistas preocupantes. É medonho dizer, diante de tantas ameaças à democracia, que o STF errou. Errou ao condenar, e até mesmo a julgar. O Legislativo precisa entrar de vez no radar da sociedade em níveis infinitamente mais agudos do que ficar sob o olhar do Judiciário – e este também precisa ficar sob a atenção da sociedade, e do próprio parlamento – nesse caso, do Senado, que nunca puniu os exageros de ministros da corte maior. Falha a Câmara, e tantos outros parlamentos, ao não punir e limitar os seus. Falha o Senado, ao nunca colocar freios no STF. Falha o Judiciário, ao afrontar o Legislativo de forma exagerada. E falha o Executivo atual ao esperar brechas desse tipo para alavancar conflitos medonhos que lhe beneficiam. A questão aqui, nesse último caso, é que Bolsonaro reza, aguarda, torce por esses instantes, e os agentes lhe ajudam. O Legislativo com o silêncio de sempre, inclusive a favor dele em seus tempos de parlamentar alucinado e exagerado, e o Judiciário quando lhe oferta tudo o que precisa para alimentar sua fogueira de ódios. Vamos longe assim. E se o Legislativo falha, que fique evidente, a casa do povo erra, e se ela é nossa, chegou a hora de a ocupar e a pressionar em torno de uma normalidade que vá além do arruinador silêncio das conivências corporativistas da tal “classe política”.

Créditos da imagem: Agência Câmara