Fundo público, interesses privados?
Hannah Maruci
Desde 2017, quando falamos em “fundo eleitoral” estamos nos referindo a um dinheiro público. Mais especificamente, estamos tratando de um fundo bilionário, sustentado pelo Estado, cuja finalidade é financiar as campanhas eleitorais. O principal argumento para a criação desse fundo foi o de que as campanhas financiadas por recursos públicos resultariam em representantes mais livres de eventuais “rabos presos” relacionados aos financiadores privados. Um fundo eleitoral público e o impedimento de doação por pessoas jurídicas favoreceria interesses públicos, ao invés de privados. Por ser público, o Fundo Eleitoral de Financiamento de Campanha, ou FEFC, como ficou mais conhecido, seria logicamente usado com mais transparência e responsabilidade. Mas será que foi isso mesmo que aconteceu?
Para responder essa pergunta, é importante destacar que, apesar da proibição da doação por pessoas jurídicas, a doação por pessoas físicas continuou permitida. A quantia, no entanto, foi limitada a até 10% da renda bruta anual individual no ano anterior ao da eleição. Em outras palavras: quem ganha mais, pode doar mais. Na prática, o que vemos são os donos das grandes empresas doando como pessoas físicas, reproduzindo a mesma conduta que se buscava combater, mas dessa vez usando o CPF ao invés do CNPJ. Além disso, mais uma vez o capital social e financeiro faz o papel de excluir as candidaturas dos grupos historicamente sub representados na política. Aqueles que não possuem entrada em círculos de potenciais doadores substanciais continuam vendo nos recursos financeiros uma das grandes barreiras para o sucesso eleitoral. Assim, ainda que o fundo público tenda a produzir uma disputa mais justa, outros componentes garantem que as regras mudem, mas o jogo siga o mesmo.
No que diz respeito ao destino dos recursos do FEFC, cabe aos partidos decidirem como a distribuição é feita. Como pré-requisito para que o dinheiro entre, é preciso que os partidos enviem ao TSE uma resolução informando como se dará essa distribuição e que nela conste o percentual mínimo de 30% definidos por lei para as candidaturas de mulheres. Apenas. Quais os critérios de distribuição desses 30% (e dos outros 70%)? Quantas mulheres receberão esses recursos? Quando esse dinheiro estará disponível para as candidatas? Para isso, não há regulação, fica à critério da famosa “autonomia partidária”, a qual, na busca da maximização dos votos, reforça e reproduz as desigualdades estruturais.
Há ainda uma importante questão sobre as finalidades para as quais o fundo pode ser utilizado. Destaco dois pontos cruciais, são eles as funções de cuidado e a segurança contra a violência política de gênero e raça. Em relação ao primeiro, é preciso destacar que, embora as funções de cuidado sejam de responsabilidade da sociedade como um todo, o fato é que elas recaem principalmente sobre as mulheres, sobretudo negras. Isso significa que para uma mulher poder se dedicar à sua campanha, ela precisa dividir esse cuidado com alguém, o que pode gerar um gasto. Dessa forma, a impossibilidade de que o fundo eleitoral possa ser utilizado, durante o período de campanha, para financiar funções de cuidado mantém e aprofunda as desigualdades, prejudicando as campanhas de mulheres, que precisam se dividir entre fazer campanha, trabalhar e cuidar dos filhos.
O segundo ponto é ainda mais grave, os recursos do fundo eleitoral não podem ser direcionados para a segurança das candidatas, pois são considerados gastos pessoais. No entanto, a violência política de gênero e raça é estrutural, não individual, e as mulheres negras e LBTQIA+ são as principais vítimas de violência política. Se a violência ocorre durante o período eleitoral – e por decorrência dele – por que as mulheres não podem direcionar recursos do fundo eleitoral para garantir sua segurança e de sua equipe enquanto fazem campanha?
Por fim, os partidos políticos seguem praticando a violência política institucional de gênero e raça ao negligenciar o financiamento às candidaturas desses grupos. No momento do alistamento, o dinheiro é prometido, quando a campanha começa, as coisas mudam de figura. Diversas candidatas estão denunciando essa situação e demandando de seus partidos uma parte dos recursos eleitorais nestas eleições. Se o objetivo é um sistema político mais justo, é preciso garantirmos que o coletivo seja contemplado, o que passa necessariamente por uma divisão mais igualitária dos recursos financeiros. Se não, seguiremos com um fundo público que financia interesses privados.
*Para auxiliar esse movimento, A Tenda das Candidatas desenvolveu um guia com um passo a passo para as candidatas pressionarem seus partidos, que pode ser baixado aqui por candidatas de todo o Brasil.