Hannah Maruci e Laura Astrolabio 

O ano é 2021, uma PEC de autoria de um senador homem, é apresentada como um avanço nos direitos políticos das mulheres. No resumo da peça legislativa, o alegado teor de avanço aparentemente se confirma: “Impõe aos partidos a aplicação de recursos do fundo partidário na promoção e difusão da participação política das mulheres, bem como a aplicação de recursos desse fundo e do fundo de financiamento de campanha e a divisão do tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão no percentual mínimo de 30% (trinta por cento) para candidaturas femininas”. Lei necessária e urgente: garantir o mínimo de recursos financeiros e políticos para as campanhas de mulheres.

Essa lei deriva do entendimento do Poder Judiciário, provocado pela deputada Benedita da Silva, de que, se no mínimo 30% das candidaturas deverão ser de um dos sexos, essa proporção deve ser respeitada no que diz respeito aos recursos financeiros (dinheiro para fazer campanha) e outros recursos (tempo de rádio e TV).  A lei que ficou conhecida como “lei de cotas de candidatura” Brasil, no entanto, tem uma história própria, proveniente da luta do movimento de mulheres, que deve ser contada antes que voltemos à PEC 18 de 2021. Pois bem, estamos falando de uma lei que existe desde 1997, mas que só foi cumprida pela primeira vez em 2014. Mas como os partidos políticos conseguiram ficar impunes pelo não cumprimento da lei por 17 anos? É aí que entra o problema: os partidos resistiram até o último segundo possível. Nos primeiros anos, se valeram de uma disputa de significado, alegando que: “a lei pede que o partido reserve 30% das vagas para mulheres, mas elas não aparecem”. Esse imbróglio atrasou em alguns anos o cumprimento da lei, levando à alteração de “reservará” para “preencherá”, em 2009, para evitar qualquer tipo de dúvida sobre o que estava sendo previsto na lei. Essa mudança, porém, não foi suficiente para garantir seu cumprimento.

O que acontece então que faz com que a lei seja finalmente cumprida? A introdução de consequências para os partidos que não a cumprirem. A eleição de 2014 é a primeira eleição geral após a decisão judicial determina que, caso não haja no mínimo 30% de um dos sexos na lista lançada pelo partido, este deverá diminuir a quantidade de candidaturas do outro sexo, de modo que a proporção determinada seja cumprida. Esse cumprimento, no entanto, não é absoluto, uma vez que para cumprir as cotas os partidos lançam mão de candidaturas laranjas, mas isso é uma outra questão.

Voltemos agora à PEC 18/2021, sobre a qual você deve estar se perguntando qual o problema, já que ela coloca uma regra constitucional importante para garantir a representação política de mulheres. Sim… e não. Essa PEC é mais do que lemos em seu resumo. Ela determina também que o seu não cumprimento não implicará em sanções. Em outras palavras: “a lei existe, mas se não cumprir está tudo bem”. No entanto, essa anistia aos partidos havia sido concedida apenas para o não cumprimento em eleições ocorridas antes da promulgação da Emenda Constitucional e a promessa política era que ela não se estendesse para outros anos.

Agora vamos um pouco à frente no tempo. O ano é 2023, uma nova PEC (PEC 9/2023) é apresentada, dessa vez instituindo a anistia aos partidos que não cumpriram as cotas de financiamento de gênero e raça nas eleições de 2022. O argumento é que os partidos “não tiveram tempo para se adaptar”. Essa argumentação levanta algumas questões. É fato que a lei de cotas de financiamento só passou a valer em 2022. Porém, desde 1997 existem as cotas de gênero de candidaturas, ou seja, há 26 anos. A afirmação de que não tiveram tempo para se adaptar, portanto, nos revela que a preocupação em direcionar os recursos para essas candidaturas não existia até então. Ou seja, historicamente os partidos políticos não respeitam os direitos políticos das mulheres e de pessoas negras, que são direitos humanos previstos na Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, de 1979, assim como a Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965.

Essa nova PEC (PEC 9/2023), pelo que analisamos aqui, vai na contramão de um histórico de avanços, uma vez que na prática eles não se concretizam porque são sistematicamente deslegitimados depois de cada eleição, quando se concede anistia aos partidos políticos que não cumpriram as ações afirmativas. Percebemos, portanto, que a cada ano eleitoral uma nova desculpa é inventada pela elite política brasileira que é formada majoritariamente por homens, brancos, risco, cis e heteros, com interesses em manter seus privilégios políticos, alijando mulheres, sobretudo negras, do campo político eleitoral. Essa prática acaba por nos lançar num cenário de sub-representação política das mulheres, principalmente negras, consequentemente, mantendo o país em um déficit democrático. Enquanto não houverem sanções que sejam efetivamente aplicadas, sabemos que não haverá cumprimento devido da lei e não avançaremos no combate à sub-representação de gênero e raça na política, que, repetimos, lança toda a sociedade em um cenário de déficit democrático.

Para mais informações sobre as atuações para barrar essa PEC, acesse o posicionamento da Tenda das Candidatas com a Plataforma dos Movimentos Sociais por Outro Sistema Político: https://atendadascandidatas.org/incidencias/contra-a-pec-9-2023/