DOLORES SILVA

A divulgação do relatório da MP 1.154/2023, elaborado pelo deputado Isnaldo Bulhões (MDB) na segunda semana do mês de junho, dirigiu a atenção pública para o encurtamento da jurisdição do Ministério de Meio Ambiente e Mudanças do Clima e do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas. Entre as mudanças institucionais da reestruturação ministerial do governo Lula, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) merece atenção especial ao ser vinculado ao Ministério de Inovação em Serviços Públicos, não por uma incompatibilidade aparente, mas sim pela dinâmica de deslocamento de arena institucional desse instrumento de gerenciamento de política ambiental, em diferentes governos.

O CAR é um registro público eletrônico, criado pela Lei de Proteção à Vegetação Nativa (nº 12.651/2012), obrigatório para todas as propriedades rurais do país.   Nele se registram as áreas de uso restrito, Áreas de Preservação Permanente (APP) e de Reserva Legal (RL), entre outras características de cada imóvel rural, o que possibilita monitorar ativos e passivos ambientais e recuperar as áreas degradadas. É um importante mecanismo de gerenciamento da paisagem rural e um requisito obrigatório parra o licenciamento ambiental de atividades econômicas como, por exemplo, agropecuárias e florestais.

Conhecida como novo Código Florestal, a Lei 12.651/2012 abrandou exigências legais aos produtores rurais, sendo a mais notória e polêmica, a anistia aos produtores que não se adequaram até o ano de 2008, ao antigo Código Florestal de 1965, no que diz respeito à manutenção de área com cobertura florestal obrigatória. Infratores sob as determinações das Leis nº 4.771/1965 e nº 9.605/1998, passaram a receber incentivos da nova legislação, como o Programa de Regularização Ambiental, que tem como pré-requisito o registro no CAR.

Mas, parece que os benefícios criados não são suficientes para apaziguar o descontentamento com a existência de regras ambientais no Brasil. Os interesses organizados dos setores produtivos rural, notadamente sob a Frente Parlamentar do Agronegócio, desejam ainda a invisibilidade de possíveis diagnósticos negativos desse setor. Afinal o que se pode fazer quando o monitoramento mostra o cumprimento da lei, senão festejar o compromisso com a preservação ambiental?

É notório, durante o processo decisório das leis ambientais, os conflitos que as determinações pela manutenção de APPs, RLs, assim como as exigências de recuperação de vegetação, causam entre setores organizados no Congresso, que falam em defesa da produção sem entraves. Durante votação do Substitutivo do Senado ao PL 1.164/1991, que deu origem à Lei de Crimes Ambientais, estava no centro dos conflitos a defesa de ‘tratamento diferenciado’ e até mesmo de supressão do termo ‘reserva legal’.

Contra as alterações conduzidas pela então senadora Marina Silva, na Câmara dos Deputados a tese do “engessamento das atividades rurais’ foi enfatizada pelo deputado Waldir Colato (PMDB-SC), então presidente da Comissão de Agricultura e Política Rural (CAPR). Na votação nominal do artigo 47 o deputado Gerson Peres (PPB-PA) interpretou a punição a queimadas ou derrubadas de vegetação de preservação permanente, reserva legal e unidades de conservação como ‘intocabilidade da floresta’ a prejudicar os interesses dos habitantes da Amazônia. Mas para as parlamentares da recém-criada Frente Parlamentar Ambientalista o ponto a ser enfatizado deveria ser a necessidade de licença do IBAMA para se realizar alterações florestais.

Na votação do DVS da Emenda de Plenário nº 164/11 do Substitutivo ao PL 1876/1999, que deu origem Lei de Proteção à Vegetação Nativa, aparecem os mesmos conflitos. Refletindo a crítica dos ambientalistas e falando em nome da presidenta Dilma Roussef (PT), o deputado Vaccarezza (PT) enfatizou que a anistia a produtores rurais envergonharia o Brasil e desgastaria sua imagem internacional. Porém, saiu vencedora a posição da coalizão em defesa dos interesses rurais, que apontou injustiça contra produtores estabelecidos a séculos em áreas que passariam a ser consideradas inapropriadas, por ser Área de Preservação Permanente.

As ‘flexibilidades’ do novo Código Florestal não tranquilizam a política em defesa do agronegócio. No governo Bolsonaro, a expressão pública mais ferrenha contra o sistema de proteção ambiental brasileiro, o CAR foi transferido da pasta do meio ambiente para o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA). No governo Lula, a esperança de que o Ministério do Meio Ambiente retome com plenitude suas atribuições foi frustrada pelo compromisso de Isnaldo Bulhões com os interesses rurais. Fica evidente que Marina Silva assusta os representantes desse setor e que acham melhor que os registros sobre regularização ambiental não esteja sob seu controle.

O CAR não resolve todos os problemas ambientais, afinal, pode ser ignorado por gestores nos âmbitos municipais, estaduais e federal, que comungam com uma visão negativa sobre o sistema de proteção ambiental país. Mas, ao ser gerenciado em sintonia com a proteção ambiental, é um grande avanço para a efetividade das políticas públicas, ao incentivar a observância da legislação e apoiar o planejamento de ações governamentais mais efetivas.

E o CAR pode auxiliar, também, na identificação de problemas sociais, como a sobreposição do uso da terra na Amazônia, onde pequenos e grandes agricultores, populações tradicionais e áreas protegidas disputam, recorrentemente, o mesmo território. A radiografia que esse instrumento oferece pode instar as autoridades a se posicionarem diante de conflitos fundiários, também.

Ao que tudo indica, a mudança do CAR para distintas arenas institucionais está associada ao medo de setores políticos, que representam os grandes interesses econômicos no campo, de que esses problemas tenham que ser enfrentados. Talvez acreditem numa difícil invisibilidade dos problemas socioambientais brasileiros.