Retrovisor é passado
Joyce Luz
Aos 45 minutos do segundo tempo, o Congresso aprovou a Medida Provisória (MP) 1154/2023 que definiu a estrutura e organização da administração pública, sobretudo dos órgãos do Poder Executivo. A MP perderia a validade caso não fosse aprovada até 1° de junho. E o Legislativo, em meio a discussões acaloradas e liberação de recursos, resolveu aprovar a MP em seu último dia oficial de vigência. Ainda na madrugada do dia 1º a Câmara aprovou o texto da medida que seguiu para o Senado, onde foi aprovada pela manhã.
Obviamente, o atraso e a postergação para a aprovação em última hora da MP não foram ações “acidentais”. Muito pelo contrário. Ficava claro, sobretudo na Câmara dos Deputados, que os parlamentares estavam emitindo um sinal de alerta para o governo de Lula: ou o presidente se senta para negociar, ou nós vamos continuar a atrapalhar a execução dos planos do governo. Se o Lula do passado não apresentou dificuldades para a aprovar suas primeiras medidas provisórias, o Lula do presente não enfrenta o mesmo cenário.
Ainda em seu primeiro e segundo mandato, Lula conseguiu aprovar suas primeiras medidas provisórias logo entre os meses de abril e maio, ou seja, sem a ameaça de perda de vigência ou eficácias das MPs e sem maiores dificuldades. É bem verdade, também, e não podemos deixar de pontuar aqui, que no que diz respeito ao trâmite e ao processo de análise das MPs há, no atual governo, um outro complicador dado pela disputa entre a Câmara e o Senado que não conseguem chegar a um acordo ou a uma definição sobre a formação das comissões mistas para a análise das MPs.
Mesmo assim, o governo conseguiu manter o acordo para a aprovação de três outras medidas provisórias próximas do vencimento: a do Bolsa Família (MP 1155/2023), a da desoneração dos combustíveis (MP MP1157/2023) e a que exclui da base de cálculo do PIS/Pasep e da Cofins as receitas referentes ao ICMS (1159/2023). Ora, como é possível explicar a manutenção de acordos entre o Presidente e o Congresso para algumas medidas, enquanto outras são levadas até o extremo? Simples: novamente, o Lula do passado precisa entender que não pode ser o mesmo Lula do presente.
Logo no início de seu mandato, Lula procurou garantir a receita do bolo que havia funcionado em seu primeiro e segundo mandato como presidente. Procurou partidos aliados no interior da arena legislativa, realizou cálculos de distância ideológica e necessidade de cadeiras para aprovação de uma agenda de políticas e formou a famosa coalizão de governo. Distribuiu o comando de pastas ministeriais para siglas partidárias como PCdoB, PSB, PDT, PSOL, REDE, PSD, União Brasil e MDB e, em troca, esperou pelo mesmo resultado do passado, ou seja, pela formação de uma maioria legislativa estável e sólida que lhe daria apoio para a aprovação da agenda de políticas do governo.
Mas o que de fato o Lula do presente possui? Um apoio legislativo frágil e delicado que, até o momento, se mostrou mais propenso a negociar com o governo votação à votação, do que garantir o famoso apoio estável. E aqui voltamos ao ponto sobre os fatos recentes com as MPs. Por que o Legislativo aceitou apoiar outras MPs como o Bolsa Família, a da desoneração dos combustíveis e a da exclusão de alguns impostos do ICMS, enquanto relutou para aprovar a MP da administração pública e organização do Poder Executivo?
Acontece que o Legislativo do presente ficou viciado, nos últimos 4 anos, a jogar um outro jogo com o Poder Executivo. Um jogo em um cenário diferente com uma agenda de políticas esvaziada, do ponto de vista de autoria do Poder Executivo, e onde a liberação de recursos pontuais se fazia mais do que suficiente para manter a negociação entre os poderes. O Lula de agora, de 2023, enfrenta as consequências desse vício e um dilema. E em primeiro lugar, Lula tem uma agenda vasta de políticas a serem aprovadas e recursos escassos para manter a sua aprovação. E em segundo, Lula precisa lidar com um Legislativo que não somente quer recursos para aprovar essa agenda de políticas, mas que, também, sabe muito bem como conseguir o que quer.
Ao relutar e ameaçar o governo com a não aprovação da MP da administração pública, parlamentares sabiam muito bem que a perda da eficácia da medida não traria nenhuma consequência eleitoral para eles, ao passo que traria grandes problemas e dores de cabeça para o Poder Executivo. Na mesma lógica, parlamentares aceitaram aprovar, sem grandes problemas, as demais MPs que aqui foram citadas, porque entendem e sabem muito bem dos prejuízos e danos eleitorais que a perda de tais medidas podem trazer para eles. Como explicar para o eleitorado, por exemplo, o fim do Bolsa Família por que os parlamentares perderam ou deixaram passar o prazo de aprovação da medida que marca sua recriação?
A lição que fica é que a quase perda da MP da administração pública surtiu o efeito esperado: parlamentares conseguiram chamar a atenção de Lula para que o presidente desse mais atenção às negociações políticas dentro do Congresso. Falta agora o Lula do passado entender que, talvez, o Lula do presente precise negociar com os parlamentares para além da distribuição e do comando de pastas ministeriais. Ao que tudo indica, cargos em agências, em secretarias importantes no interior dos ministérios e até mesmo cargos de liderança no interior do Congresso parecem, também, ser uma “nova”, ou mais visada, condição de apoio que não é mais segredo para ninguém. A ver como o Lula do presente vai lidar com problemas que nos perseguem desde o passado.