Dolores Silva

A Comissão Parlamentar de Inquérito das Organizações não-governamentais (CPI das ONGs) teve como convidado na última terça feira (15/08/2023) o ex-ministro do meio ambiente, Ricardo Salles. Quem dedicou seu tempo a ouvi-lo reavivou na memória os cotidianos ataques que o governo anterior e seus aliados proferiam às organizações sociais, intelectuais, artistas e instituições que se distanciam ideologicamente do projeto que a extrema direita tem para a Amazônia.

Instalada em 14 de junho no Senado, essa CPI é fruto da iniciativa do senador Plínio Valério (PSDB-AM) que, paradoxalmente, teve duas tentativas frustradas no governo anterior. A comissão espelha a oposição ao governo do PT, com os seus postos chaves ocupados pelos senadores Plínio Valério (PSDB/AM) na presidência, Jaime Bagattoli (PL/RO) na vice-presidência e Marcio Bittar (UNIÃO/AC) na relatoria, todos comungando da mesma visão a respeito da atuação de organizações sociais, especialmente as ambientalistas. O presidente da CPI afirmou que o objetivo dos trabalhos é mostrar que as ONGs se utilizam do nome Amazônia para ficar ricos e imobilizar a Amazônia com “cadeados ambientais”.

Apesar do Plano de Trabalho da comissão afirmar que sua finalidade não é fustigar o governo atual e nem a ideia de parceria entre o Estado e entidades de direito privado, o período a ser investigado, de 2002 a 1º de janeiro de 2023, coincide com a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao poder, quando a aproximação com organizações da sociedade civil foi aprofundada e incentivada. Como finalidade a comissão define que irá investigar a “concentração de recursos em atividades-meio”, “abuso de poder”, “intromissão em funções institucionais do poder público” e “aquisição de terras”, por ONGs e OSCIPs. Mas, Plínio Valério declarou que ao remontar governos anteriores vai ficar patente que o PT financiou entidades que têm objetivos desvirtuados.

Entre as atividades já aprovadas encontra-se a diligência externa na Reserva Extrativista Chico Mendes e em rio Branco, capital do estado do Acre, para escutar lideranças locais. Vale lembrar que a longa trajetória do PT nesse estado foi interrompida nas eleições de 2018, com a eleição de um candidato de direita. Os repasses do Fundo Amazônia, também, estão no foco dos parlamentares afinados com o bolsonarismo.

As CPIs não são instrumentos técnicos de investigação, sua dimensão de objetividade – que pode ser alcançada com o levantamento de boas evidências e encaminhamento de inquérito para as instituições judiciais – não suplanta a disputa política, nem o viés ideológico das diferentes forças partidárias no Congresso. Os trabalhos de investigação, muitas vezes iniciados para dar visibilidade a parlamentares e/ou para fustigar o governo da ocasião, nem sempre chegam ao fim, o que alimenta a visão comum de que CPIs acabam em “pizza”. Entretanto, trata-se de uma institucionalidade central no Parlamento, instrumento de controle legislativo que dá visibilidade a muitos problemas relevantes para a sociedade e que pode ter resultados contrários aos desejados pelos grupos políticos responsáveis por sua criação. Que o diga a CPÍ da Covid 19!

Das onze cadeiras da CPI das ONGs da Amazonia, quatro são do Bloco Parlamentar da Resistência Democrática (PSB, PT, PSD, REDE), que agrega partidos acostumados a enfrentar com louvor ideias fixas da direita brasileira atual, tais como o negacionismo e a ojeriza à participação social. Parlamentares que não são titulares da comissão também se fazem presentes para acompanhar assuntos de seu interesse, o senador Paulo Paim (PT), por exemplo, tem registrado frequência na CPI das ONGS.

Retornando à fala do ex-ministro Salles, que associa ONGs e pesquisadores em um conluio para ganhar dinheiro às custas da divulgação de imagens negativas sobre a Amazônia, temos que atentar que o projeto de desmonte das instituições ambientais continua vivo no Parlamento brasileiro. Sob o incentivo de Bolsonaro, diversas ações foram acionadas por seus aliados para frear a delimitação de áreas protegidas e terras indígenas, e, assim ampliar o espaço para atividades econômicas de alto impacto ambiental. No âmbito da sociedade civil, em 2019, ONGs de Alter do Chão (PA) foram acusadas de receber dinheiro da WWF em troca das imagens da floresta queimando na região. Quatro brigadistas dessas organizações, que atuavam para conter o avanço do fogo, foram presos sob a acusação de causar incêndios em área de proteção ambiental (APA) do município de Santarém. A convocação de “fazendeiros” para o dia do fogo, no estado do Pará, chegou ao conhecimento público com marca do bolsonarismo.

Referindo-se às organizações sociais como “essa turma”, Salles mostra seu desapreço pela participação da sociedade civil em projetos de políticas públicas. Ao comungar com a ideia dos criadores da CPI, de que as ONGs na Amazônia atuam contra os interesses nacionais, tira do bolso um roteiro de ações que objetivam desmontar o modelo de governança ambiental, onde as organizações da sociedade civil são parte fundamental. Como instituições submetidas à legislação, para atuar devem passar por instrumentos de controle e ser investigadas, quando necessário. Relatório do TCU é constantemente citado pelos membros da CPI, apontando um caso em que 85% dos recursos teriam sido aplicados em atividades meio. Não generalizar ilegalidades para o conjunto de ONGs e OSCIPs deveria ser o propósito de uma comissão legislativa.

O que os argumentos de Salles não deixam claro é que, junto ao projeto econômico que despreza a regulação ambiental, há uma disputa por recursos que seu grupo político almeja controlar para transferir aos seus aliados. É fácil apostar que o ex-ministro e seus correligionários na CPI confiariam em organizações civis ou religiosas, aliadas, muitas que se atribuem a missão de salvar vidas e almas nas comunidades indígenas e, às vezes, se dispõem a criar “curumins’, nem sempre com o consentimento claro e legal de suas mães, como no caso da ex-ministra Damares Alves.