Hannah Maruci Aflalo

 

A menos de dois meses do prazo previsto pelo “princípio da anualidade eleitoral”, segundo o qual qualquer alteração na legislação eleitoral só poderá ser aplicada à eleição que ocorrer até um ano da data de sua vigência, as ameaças de retrocesso estão chegando a galope por todos os lados. E o pior: tem sido sempre assim.

 

O show se desenvolve com naturalidade e sem constrangimentos por parte daqueles que o montam. Os procedimentos parecem ser padrões:

 

  1. Uma PEC para anistiar os partidos políticos que não tenham cumprido a lei eleitoral nas eleições anteriores – em regra, em relação ao uso dos recursos para mulheres e/ou negros e às cotas de candidatura de gênero[1];
  2. Um GT instituído às pressas, pouco tempo antes do prazo para que alterações possam valer nas próximas eleições – geralmente com uma composição majoritária, senão exclusiva, de homens brancos;
  3. Uma ameaça de retrocesso absurda lançada de forma quase sensacionalista para ganhar as capas dos jornais – mas que representa uma ameaça real, ao mesmo tempo em que tira o foco de mudanças que parecem pequenas, mas que tem grande influência no processo eleitoral;
  4. Um cronograma que prevê poucas – ou nenhuma – audiências públicas – e quando prevê, tende a convidar especialistas que já se sabe de antemão que darão apoio às propostas;
  5. Um acordo prévio feito nos corredores entre os parlamentares que irão compor o GT ou a Comissão, de modo que as sessões ocorram de forma rápida e sem intercursos, pois já está tudo negociado.

 

Pronto, o “pack” básico está montado! E é assim que vem acontecendo sistematicamente todo ano ímpar. Tratam-se de mudanças estruturais apresentadas como “minis”, feitas “de última hora”, sem a participação adequada da sociedade civil e sem tempo hábil para a realização de reais aprimoramentos do processo eleitoral.

Os parlamentares eleitos se valem da estrutura legislativa e política para legislar em causa própria e defender os seus interesses e de seus partidos. Uma verdadeira aberração. E contra a instituição que os respalda, as possibilidades da sociedade civil organizada realmente intervir nesse processo são questionáveis.

Neste mês foi anunciado o que o relator chamou de “o GT mais rápido da história da Câmara”, o qual foi analisado com propriedade em artigo deste blog. Mas fica a pergunta: Rápido por quê? Para quem? Quem está se beneficiando desse modelo quase institucionalizado de revisão das leis eleitorais? Não é possível que os parlamentares realmente acreditem que uma reforma mais rápida seja realmente a melhor opção. Existem inúmeras organizações da sociedade civil organizada que se dedicam a produzir pesquisas, análises, notas técnicas e relatórios com recomendações sobre a legislação eleitoral, as quais não são incorporadas nas reformas em questão. Por isso, à pergunta sobre quem se beneficia com isso, trago três possíveis respostas. A primeira: beneficia os próprios parlamentares. A segunda: beneficia os partidos políticos. A terceira, e mais importante: beneficia o status quo.

Não é também por acaso que as políticas de ações afirmativas na política são as que mais sofrem. Para se manter o status quo, é preciso manter a desigualdade. Ou seja, essas reformas sistemáticas, da forma como estão sendo feitas, não contemplam o objetivo de aprimorar o processo eleitoral. Caso o objetivo fosse esse, o caminho a se percorrer passaria pela garantia das políticas de ações afirmativas, pois apenas elas são capazes de tornar nosso sistema eleitoral, hoje com uma representação tão distorcida, mais democrático. Mas fica evidente que a prioridade não é essa. Pelo contrário, o que parece ser buscado é uma adequação das leis eleitorais para que nada mude. Assim, a cada avanço em direção a um sistema eleitoral mais justo, um recuo chega sem demora.

[1] Para uma análise do histórico dessas anistias, ver a publicação feita pela organização A Tenda das Candidatas.