Michelle Fernandez (UnB) e Mariana Seabra (ONG Bloco A)

O debate sobre aborto é polêmico e tem acendido discussões calorosas na nossa sociedade. Provocando reações extremas e apaixonadas, a questão tem ganhado destaque na arena pública e dentro das instituições brasileiras. Se por um lado temos atores políticos conservadores, que norteiam o debate a partir de temas morais e religiosos; por outro lado está o movimento feminista, que entende o aborto como uma das condições para que as mulheres tenham plena autonomia sobre seus próprios corpos e não morram ou sejam presas por tal ato.

Nas últimas duas décadas, a questão do aborto vem se tornando um ponto importante do debate público, ganhando relevância também na política institucional. No legislativo nacional, em 1991, foi apresentado o Projeto de Lei 1135, pelo deputado Eduardo Jorge (PT-SP) e pela deputada Sandra Starling (PT-MG). O projeto, tinha como objetivo suprimir o artigo 124 do código penal e, dessa forma, despenalizar o aborto. O texto do PL afirmava que “o referido projeto de lei tem por objetivo atualizar o Código Penal, adaptando-o aos novos valores e necessidades do mundo atual, particularmente no sentido do reconhecimento dos direitos da mulher enquanto pessoa humana. O artigo que se suprime penaliza duramente a gestante que provoca aborto ou consente que outro o realize. Esta é uma disposição legal ultrapassada e desumana”.

Em 2001, o PL 1135/91 efetivamente voltou à pauta da Câmara dos Deputados sendo debatido na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) e recebendo parecer da relatora Jandira Feghali (PCdoB/RJ) pela aprovação do projeto. Depois de sucessivos pedidos de vista, o PL voltou à agenda da Câmara para ser debatido, agora com novo relator. O deputado Jorge Tadeu Mudalen (União Brasil/SP) emite parecer pela rejeição do projeto, consegue colocá-lo em pauta e proceder à votação do mesmo. O PL 1135 é, assim, rejeitado na CSSF. Tramitando por cerca de 20 anos, o projeto foi arquivado em 2011.

O PL 1135/91 foi ocupando espaço na esfera pública. Em 2004, recebeu apoio durante a realização da 1ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, que aprovou uma recomendação pela descriminalização e legalização do aborto. No entanto, dentro do próprio legislativo, foi montada uma ofensiva contra o avanço do debate pela descriminalização do aborto. O contra-ataque ao parecer favorável da relatora Jandira Feghali e à possível aprovação do texto veio em novembro de 2005, com a criação da Frente Parlamentar Antiaborto coordenada pelo ex-deputado Luiz Bassuma (PV/BA). A partir dos trabalhos da Frente surge o PL 478/2007, de autoria de Luiz Bassuma, e outros, que versa sobre o Estatuto do Nascituro. Esse projeto tem se mantido em discussão na Câmara dos Deputados até os dias de hoje.

Atualmente, em meio a um cenário caracterizado por conflitos entre setores conservadores e progressistas e por debates pautados por questões morais e religiosas, o Estatuto do Nascituro ocupa espaço relevante na agenda do Congresso. Até o dia 4 de outubro de 2023, o projeto permanece na pauta da Câmara dos Deputados aguardando uma nova análise para a votação do requerimento de urgência e a apresentação em Plenário do parecer da relatora, deputada Priscila Costa (PL-CE), favorável à aprovação. A decisão de priorizar a urgência na análise do Estatuto do Nascituro surge como resposta ao início do julgamento pelo STF da ADPF 442, em 22 de setembro de 2023. Essa ADPF solicita que se declare a “não recepção parcial dos art. 124º e 126º do Código Penal, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras 12 semanas”. A ministra Rosa Weber proferiu voto favorável à ação, que continuará sendo julgada pela suprema corte.

É importante salientar que, ainda que não tenhamos avançado com a descriminalização do aborto, as normativas brasileiras preveem três possibilidade legais de abortamento: por gestação derivada de violência contra a mulher, por risco de vida da mãe ou por anencefalia. O Decreto Lei 2.848/1940 estabelecia as circunstâncias nas quais o aborto era permitido no país naquele momento, contemplando casos de violência sexual e risco de vida da mulher. Adicionalmente, em 2012, o Supremo Tribunal Federal, pela ADPF 54, expandiu as possibilidades de interrupção da gestação ao autorizar o procedimento nos casos de fetos anencefálicos.

Nesse contexto, torna-se incumbência do Estado assegurar o acesso das mulheres que se enquadram em tais situações. No entanto, sabemos que há dificuldades ao acesso à interrupção da gravidez já prevista em lei no Brasil. Somente em 1989 foi estabelecido o primeiro serviço de referência para a interrupção da gestação no país. Nas últimas décadas passamos por momentos de avanços e retrocessos nesse tema. Durante o governo Bolsonaro, grupos religiosos dominaram a agenda do aborto com uma abordagem moralista em detrimento de um olhar a partir da saúde pública sobre o tema. Como resultado do retrocesso na garantia desse direito adquirido, surge a ADPF 989. Essa nova ação busca suspender um manual do Ministério da Saúde editado durante o governo Bolsonaro, que alegava não haver aborto legal no Brasil, e garantir o acesso ao aborto legal conforme a Constituição. Atualmente, o governo federal tem progredido de maneira lenta e gradual na regulamentação do exercício dos profissionais envolvidos na assistência a aos casos de aborto legalmente previstos, na melhoria dos serviços de saúde e na garantia do acesso apropriado a esses serviços.

A estratégia de pautar o aborto por meio do STF tem colocado em pauta, na sociedade, o reconhecimento do tema como uma realidade social e um convite a que os poderes da República se posicionem diante da violação de direitos e de questões que incidem sobre os altos índices de mortalidade materna no nosso país. O Legislativo tem feito forte oposição ao avanço dos debates sobre a descriminalização do aborto, questionando o papel do STF e disputando a narrativa sobre o tema na sociedade. Essa tensão entre os poderes, somada à percepção sobre o tema na opinião pública, moldam o futuro das leis sobre o aborto no Brasil. No entanto, como afirma a ex-ministra Rosa Weber, “impor a continuidade da gravidez, a despeito das particularidades que identificam a realidade experimentada pela gestante, representa forma de violência institucional contra a integridade física, psíquica e moral da mulher, colocando-a como instrumento a serviço das decisões do Estado e da sociedade, mas não suas”.