Graziella Testa

 

Em 2023, a democracia no seu sentido mais profundo ainda é um conceito escandaloso. A ideia de que cada cidadão é fundamentalmente igual a qualquer outro e merece voz e voto nas decisões que vão influenciar na sua vida é muito diversa do valor quase universal da democracia liberal, ou seja, do direito de escolher livremente os representantes que irão tomar decisões no seu lugar. A democracia representativa é essa coadunação dos princípios da igualdade e da liberdade e desde o momento que começaram as discussões sobre a ideia de democracia na era moderna foi alvitrado o risco da ditadura da maioria, que já era antecipado pelos gregos em suas tipologias das formas de governo. Ou seja, o maior risco do governo da maioria, definição dos gregos, era que aqueles cidadãos que não pertenciam a esse grupo vivessem sob um regime autocrata onde não teriam chance para qualquer participação.

O ponto importante a ser observado aqui é que na base da representação política está o princípio da distinção, isto é, escolhemos aqueles que julgamos estarem mais preparados dentre os demais cidadãos da sociedade. Ainda que o termo “democracia representativa” tenha se tornado quase um nome composto, é preciso considerar que a conjugação da democracia com a representação é quase uma contradição em termos: enquanto a democracia apregoa a igualdade absoluta entre os cidadãos, a representação realiza o princípio da distinção aristocrático. Nada disso é novidade ou é peculiaridade do Brasil. A única forma de restringir o poder é por meio de outro poder e essa não é só a base do princípio da separação dos Poderes, mas é também o princípio para contrabalanço interno das instituições.

No Legislativo, duas instituições são relevantes para exercer o contrabalanço interno, as comissões permanentes e os partidos políticos. O paulatino processo de fragmentação partidária tornou menos relevante o papel dos partidos no contrabalanço do poder centralizador do presidente. As comissões permanentes também foram desarticuladas num processo que culminou na formalização do poder discricionário do Presidente da Mesa em não encaminhar as propostas para essas arenas (formação de comissão especial). Em casos mais extremos, chegou a substituir por completo a arena das comissões por grupos de trabalho, para os quais não há proporcionalidade partidária ou necessidade de um texto específico a ser analisado.

Arthur Lira chegou a comprometer-se publicamente a aprovar a urgência de uma proposição e votá-la em Plenário logo após sua deliberação no grupo de trabalho. Esse foi um caso interessante, o da breve e malsucedida tentativa de realizar uma “minirreforma eleitoral” em 2023. Em 23 de agosto de 2023, um grupo de trabalho foi criado para debater o tema, embora não houvesse um texto específico para discussão. De acordo com o princípio da anualidade, as alterações precisam ser aprovadas com pelo menos um ano de antecedência para terem efeito em uma eleição, o que, em 2023, significaria a primeira semana de outubro. Duas semanas após a formação do grupo, um documento de apresentação com diretrizes gerais das alterações a serem apresentadas sob a forma de um texto foi divulgado. As proposições formais só foram apresentadas em 12/09 (PL 4438/23 e PLP 192/23), três semanas antes do prazo máximo para a promulgação (ainda sujeitas à aprovação no Senado e à sanção presidencial). O PLP teve sua urgência aprovada no dia seguinte, em 13/09, e foi aprovado em Plenário em 14/09, durante uma sessão semipresencial. Assim, em apenas dois dias, ocorreu a tramitação formal de um texto que modificaria aspectos do sistema eleitoral brasileiro, incluindo o cálculo para eleições proporcionais. Antes disso, o único documento disponível era uma apresentação de powerpoint. A matéria não foi aprovada a tempo no Senado.

Não há dúvidas de que nos últimos cinco anos ocorreu uma diminuição dos espaços para a atuação da minoria e para o debate qualificado no Legislativo. O produtivismo legislativo, foi louvado no discurso de posse para o segundo mandato de Lira: “Esta foi a marca da nossa produção legislativa recorde – as matérias andaram. (…) Sinto-me honrado pela confiança a mim creditada através destes 464 votos. Um resultado que me impulsiona a seguir focado na condução ágil dos projetos de interesse do País, respeitando toda nossa dinâmica interna de condução e fiel à regra de que, nesta Casa, a vontade da maioria sempre prevalece, sem nunca cercear o direito da minoria.” (grifo nosso).

O ato que possibilitou a existência de sessões remotas após o fim da pandemia teve como justificativa a agilidade: “O presente Ato permite o registro de presença e votação pelo aplicativo lnfoleg no dia 23 de junho de 2022 e nas sessões e reuniões deliberativas convocadas para as segundas e sextas-feiras, de modo a otimizar os trabalhos da Casa, revelando-se medida ágil, prática e moderna para a finalidade a que se propõe, a par de viabilizar a conciliação dos trabalhos desenvolvidos pelos parlamentares no processo legislativo e em suas bases” (grifo nosso).

A agilidade como valor e a maioria como sinônimo de democracia parecem ser a tônica do momento na Câmara dos Deputados. O resultado é que os espaços que sobram para a minoria, especialistas e sociedade são o Senado e o Judiciário. Mais uma vez, o Judiciário como arena contra majoritária não é particularidade do Brasil, talvez seja mais forte nesse momento em que o espaço mais apropriado para o processamento do conflito, o próprio Legislativo, esteja restrito em prol do princípio da agilidade, que é o coração do produtivismo. A democracia no seu sentido mais profundo ainda é um conceito escandaloso, mas nenhum desses dilemas são novos e já estavam contemplados no nosso desenho institucional. Os atores passam, mas as instituições ficam. O produtivismo legislativo é primo da autocracia e pai da judicialização da política, ainda que não reconheça a paternidade.