Joyce Luz

 

Quem aqui nunca ouviu aquela história de que os Presidentes brasileiros seriam extremamente fortes por terem a prerrogativa de iniciar legislação? Por muito tempo, a mídia, o público em geral e até mesmo parte dos analistas, chegaram a considerar que os decretos com força de lei, mais conhecidos como as Medidas Provisórias (MPs), editadas pelo Presidente da República seriam usados como forma do Poder Executivo demonstrar sua força para contornar um Legislativo – que até meados dos anos 2000 era visto como fraco e indisciplinado.

Acontece que o tempo passou e a empiria, ao contrário do que o senso comum pregava, mostrou como, na verdade, as MPs carregariam consigo mais a ideia de um termômetro do consenso entre o Presidente e o Legislativo, do que a demonstração e uso de uma força exacerbada. Até meados de 2001, antes da Emenda Constitucional (EC) 32 de 2001, as MPs só podiam ser apresentadas pelo Executivo e deveriam ser analisadas pelo Legislativo obrigatoriamente dentro do prazo de 30 dias, prorrogáveis por mais 30. Ainda, caso o tempo de análise se esgotasse, presidentes podiam reeditar as MPs. Com a EC 32 de 2001, o prazo de análise das MPs passou a ser de 60 dias, prorrogáveis por mais 60, com a exclusão da possibilidade de reedição dessas medidas e com o estabelecimento de que a partir do 45º dia de análise de uma MP, a pauta do Legislativo ficaria sobrestada.

Pelas regras vigentes e prazos estabelecidos, fica claro que uma MP deve ser obrigatoriamente analisada pelo Legislativo e em um tempo hábil. Ao Legislativo cabe o importante poder de decidir se uma política que imediatamente vira lei vai continuar a ser aplicada ou se toda a população ou grupo de interesse atingido por uma MP terá que retornar ao status quo. Geralmente, MPs carregam em sua essência políticas importantes e consideradas de urgência para serem aplicadas. E essas características, somadas às regras e prazos na análise das MPs é que fazem com que a expectativa seja a de que presidente só enviem MPs para a análise do Congresso mediante a construção de acordos e consenso prévio com a maioria Legislativa. Não parece lógico e racional que presidentes apresentes MPs que alteram imediatamente o cotidiano dos cidadãos esperando que seus efeitos durem apenas 120 dias para depois caducarem.

Nesse sentido e ao contrário do que o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) viveu no auge do em seu primeiro e segundo mandato (entre 2003 e 2010), Lula vive uma verdadeira tragédia com a aprovação de suas MPs e construção do consenso e formação de uma maioria estável com os membros do Legislativo. De acordo com o I-GOV[1] – índice que se propõe a medir a governabilidade dos presidentes brasileiros a partir de três dimensões (Legislativo, Judiciário e Opinião Pública) – desde janeiro de 2023 até o final de setembro, Lula já apresentou 36 MPs. Dessas, 20 já deveriam ter sido analisadas pelo Congresso, mas 14 perderam a eficácia por falta de análise dos congressistas. Somente 6 MPs foram aprovadas e todas elas com alterações. Entre janeiro e setembro de 2003, ano se seu primeiro mandato, Lula teve 47 MPs analisadas pelo Congresso, sendo 22 aprovadas sem alterações, 23 aprovadas com alterações e apenas 2 MPs que perderam a eficácia. No mesmo período em 2007, em seu primeiro ano do segundo mandato, 49 MPs foram analisadas, sendo 26 aprovadas sem alterações, 21 com alterações e apenas 2 que perderam a eficácia.

Ainda que boa parte da perda da eficácia de 14 MPs da atual gestão de Lula possa ser explicada pela disputa do protagonismo entre os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e pela discussão acerca da retomada ou não das Comissões Mistas para a análise das MPs, é certo que o atual presidente vive em um governo sem medidas provisórias. Aceitar a perda de 14 MPs indica que, apesar das disputas e conflitos internos que possam existir dentro do Congresso, o atual presidente parece ainda não ter acertado a mão para a construção de relações estáveis no interior do Legislativo e para mostrar o que é ou não prioridade em seu governo.

[1] O I-GOV é um índice desenvolvido pela 4-intelligence. Mais informações podem ser consultadas em: https://blog.4intelligence.ai/wp-content/uploads/2023/07/4intelligece-Indice-de-governabilidade-Historico.pdf