Lara Mesquita

Em anos eleitorais, praticamente todos os meses possuem um marco do calendário eleitoral: desde janeiro, empresas que desejam divulgar resultados de sondagens de intenção de voto precisam registrar suas pesquisas na Justiça Eleitoral; em março, abriu-se a janela para mudanças partidárias sem perda de mandato para eleitos pelo sistema proporcional; em abril, tivemos o prazo limite para novas filiações partidárias para os possíveis candidatos e o prazo de registro de novas federações partidárias; em maio, encerrou-se o prazo para alistamento de novos eleitores ou transferência; encerrou-se no dia 03 de junho o prazo para os partidos informarem à justiça eleitoral em caso de renúncia a parte que lhes cabe do Fundo Eleitoral (FEFC – segundo informações do site do TSE, nenhum partido o fez). No final deste mês, dia 30, emissoras de rádio e TV não poderão mais transmitir programas apresentados ou comentados por pré-candidatos. O calendário segue intenso até o primeiro domingo de outubro, quando ocorre o primeiro turno das eleições municipais.

Fevereiro, o mês do carnaval, teria sido o único mês sem nenhum marco no calendário eleitoral, não fosse o Supremo Tribunal Federal (STF) ter concluído, no dia 28, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.228. Em uma só decisão, o STF impôs duas mudanças que podem impactar a distribuição das cadeiras no pleito deste ano.

Primeiro, o julgamento concluiu pela inconstitucionalidade do artigo 111 do Código Eleitoral, que desde 1965 estabelecia que, na disputa para cargos proporcionais (vereadores, deputados estaduais e federais) “Se nenhum partido alcançar o quociente eleitoral, considerar-se-ão eleitos, até serem preenchidos todos os lugares, os candidatos mais votados.” A redação desse artigo foi alterada em 1985 para incluir as coligações e novamente em 2021, após a proibição das coligações eleitorais, para retirá-las.

Analisando resultados das eleições municipais de 2020 e 2016 não foi possível identificar nenhum município em que nenhum partido ou coligação (permitidas em 2016) tenha alcançado o quociente eleitoral. Também não há registro de tal fato nas disputas para deputados estaduais ou federais. Mesmo com o fim das coligações a partir de 2020. Na prática essa decisão é inócua e não há razão para nos preocuparmos com ela.

A segunda mudança tem maior impacto esperado sobre a distribuição das cadeiras para vereadores. Segundo o portal do STF “prevaleceu o entendimento de que a aplicação dessa cláusula de desempenho, que exigia o atingimento de 80% do quociente eleitoral, para os partidos, e 20% para os candidatos, introduzida no Código Eleitoral pela Lei 14.211/2021, na última fase da distribuição de vagas, inviabilizaria a ocupação de lugares no parlamento por partidos pequenos e por candidatos que tenham votação expressiva.”[1]

Em termos práticos: após os votos serem contabilizados, a decisão sobre os eleitos ocorre em duas rodadas. Na primeira, pelo cálculo do Quociente Partidário (QP), e na segunda, pela distribuição das sobras. Na primeira rodada, participam apenas os partidos/federações cujas listas partidárias receberam votos igual ou superior ao Quociente Eleitoral (QE). Na segunda, apenas os que receberam votos igual ou superior a 80% do QE.

Além disso, existe uma “nota de corte” para os candidatos. Na primeira rodada (QP), a exigência é de 10% do QE; na segunda, 20% do QE. A regra de distribuição das sobras foi apelidada de “80-20”. Como as listas partidárias são ordenadas de forma decrescente de acordo com a votação nominal de cada candidato, conclui-se que essa regra é contraintuitiva: é preciso menos votos em relação ao QE para ganhar uma cadeira na primeira rodada do que na segunda. O objetivo declarado pelo legislador era favorecer partidos maiores e mais estruturados e diminuir a fragmentação[2].

Como o critério de votação individual é maior na segunda rodada que na primeira, pode acontecer, como de fato aconteceu em alguns estados em 2022 (única ocasião em que essa regra vigorou), de nenhuma lista partidária possuir candidatos que cumpram a votação individual mínima de 20% do QE. E então o que acontece? A legislação estabelece que: “quando não houver mais partidos com candidatos que atendam às duas exigências (…), as cadeiras serão distribuídas aos partidos que apresentarem as maiores médias.” (Código Eleitoral, art. 109, III – grifos meus).

A redação é ambígua, de certo. Não deixa claro se as duas exigências precisam ser cumpridas simultaneamente, ou existe uma hierarquia. Em 2022 prevaleceu a interpretação de que em caso de nenhum partido possuir candidato que cumpra a votação nominal mínima de 20%, distribuem-se as cadeiras entre os partidos que cumpram a regra de 80% do QE.

É exatamente essa interpretação que foi derrubada. Os juízes do STF parecem desconhecer o princípio de voto proporcional em lista partidária.

Em 2024, nos municípios onde ainda restem cadeiras a serem ocupadas na rodada de distribuição das sobras, mas nenhuma lista “apta” tenha candidato com votação nominal correspondente a 20% do QE, todos os partidos, independentemente do total de votos recebidos, poderão participar da distribuição das sobras. O objetivo declarado é permitir que “partidos pequenos e candidatos com votação expressiva” tenham uma oportunidade.

Recentemente, vimos juízes do STF fazendo mea culpa pela decisão de 2006, quando a corte derrubou a cláusula de barreira aprovada pelo Congresso em 1997, que seguia o modelo alemão. A decisão resultou em maior fragmentação no legislativo brasileiro, uma consequência similar à que podemos esperar da decisão deste fevereiro.

[1] Disponível em https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=528283&ori=1 , consultado em 10 de junho de 2024. Grifos meus.

[2] Para saber como se dá o cálculo do Quociente Eleitoral e Partidário, e a aplicação da regra 80/20, sugiro esse post no blog da FGV que escrevi por ocasião da eleição de 2022: https://portal.fgv.br/artigos/voto-proporcional-entenda-funciona-eleicao-deputados-brasil