Michelle Fernandez (UnB) e Luciana Santana (UFAL)

 

Sob a liderança do presidente Arthur Lira (PP), a Câmara dos deputados aprovou em menos de 24 segundos, a tramitação em regime de urgência do projeto de Lei (PL) 1904 no último dia 12 de junho. De autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), este PL tem o objetivo de penalizar meninas e mulheres que realizarem o procedimento de interrupção de gravidez com pena de reclusão de 6 a 20 anos, inclusive no caso de gravidez resultante de estupro, equiparando ao crime de homicídio simples. A nova pena proposta é superior à possível punição a estupradores, que atualmente é de até 10 anos de reclusão.

Não é novidade que apesar da descriminalização do aborto ter avançado na maioria das democracias ocidentais, o aborto não é permitido no Brasil. Mas é importante salientar que as normativas brasileiras preveem três possibilidades legais de abortamento: por gestação derivada de violência contra a mulher (estupro), por risco de vida da mãe ou por anencefalia. O Decreto Lei 2.848 de 1940 já estabelecia as circunstâncias nas quais o aborto era permitido no país naquele momento, contemplando casos de violência sexual e risco de vida da mulher. Décadas depois, em 2012, o Supremo Tribunal Federal, pela ADPF 54, expandiu as possibilidades de interrupção da gestação ao autorizar o procedimento nos casos de fetos anencefálicos.

Durante o governo Bolsonaro, grupos religiosos e conservadores dominaram a agenda do aborto com uma abordagem moralista em detrimento de um olhar a partir da saúde pública sobre o tema. Nesse periíodo, o debate sobre aborto foi retirado da agenda pública e, até mesmo no atual governo Lula, o debate continua interditado em virtude da dificuldade de diálogo sobre o tema com o Congresso Nacional, atual espaço de atuação de parlamentares antiaborto que advogam por pautas conservadoras, moralistas e religiosas.

No entanto, na última semana, o tema do aborto voltou ao centro das discussões na Câmara dos Deputados e, por consequência, em todo o país. A retomada do assunto na Câmara não ocorre sem motivações. Por trás dessa discussão, que poderá retroagir em direitos que atingem a dignidade humana de meninas e mulheres, há embates políticos e institucionais dentro do legislativo federal. De um lado estão os interesses de deputados conservadores, especialmente aqueles ligados à bancada evangélica, que utilizam a pauta para posicionar-se contra o governo federal e impulsionar o desgaste do governo junto a parcelas específicas da sociedade. Por outro lado, temos as negociações entre parlamentares que, para alcançar interesses próprios, colocam em jogo a dignidade de meninas e mulheres por meio do retrocesso de direitos adquiridos. Além disso, no jogo do PL 1904, estão os embates entre legislativo e Supremo Tribunal Federal que, por vezes, se posiciona na direção da garantia de direitos, inclusive no debate sobre o aborto.

Ainda que saibamos que a maioria dos abortos legais feitos no Brasil são realizados em meninas de 10 a 14 anos que sofreram estupro, o debate do PL 1904 pode ser levado às últimas consequências, ou seja, pode ser pautado no plenário da Câmara e aprovado. Frente a essa possibilidade de retrocesso em um direito adquirido desde 1940 e, por consequência, a essa afronta às meninas e mulheres brasileira, nos perguntamos: para quem legislam os/as deputados/as federais deste país?