Vitor Vasquez

Não é novidade que no período recente cada vez mais políticos evangélicos têm protagonizado as eleições no Brasil. O fenômeno, que pôde ser observado no Legislativo já em 2014, prosseguiu em 2018 e em 2022. De maneira generalizada, parlamentares evangélicos são associados a pautas morais, vinculando-se a uma ideia de família tradicional que se posiciona contrária ao aborto, à união de pessoas do mesmo sexo e às questões de gênero. A defesa dessas pautas seria feita, na Câmara dos Deputados, de forma coordenada, através de uma ação coletiva encampada pela bancada evangélica.

Tal interpretação ganhou amplo destaque recentemente durante o debate público em torno do PL 1904/2024, que visa equiparar o aborto realizado acima de 22 semanas de gestação a homicídio. Encabeçado pelo deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), pastor e teólogo ligado à Silas Malafaia (Assembleia de Deus Vitória em Cristo), o projeto de lei foi atribuído à bancada evangélica, principalmente em função de seu teor, de sua autoria e de seus principais defensores.

Contudo, se considerarmos que uma bancada deve ter atuação homogênea e disciplinada, podemos encontrar dificuldades em identificar a existência de uma bancada evangélica na Câmara. E, sendo este o caso, mais do que um mero melindre de rigor conceitual, há um problema analítico que impacta todos que estão preocupados em compreender o atual contexto político brasileiro, sejam acadêmicos, jornalistas ou eleitores em geral. Nesse sentido, devemos considerar que nem só evangélicos encampam essas pautas, como ficou demonstrado no apoio da CNBB ao PL em questão, e nem todos evangélicos se vinculam de forma alinhada às pautas morais.

Como formalmente na Câmara há apenas as bancadas partidárias ou de blocos partidários, o primeiro desafio é identificar o que delimita a bancada evangélica e, consequentemente, quais parlamentares a compõem. Uma boa solução para este problema seria recorrer às frentes parlamentares, associações suprapartidárias de aperfeiçoamento do processo legislativo, mas que não possuem as obrigações e os direitos dos partidos políticos e blocos partidários. No entanto, se comparamos a atual composição partidária da Frente Parlamentar Evangélica com os partidos dos parlamentares que subassinaram o texto do PL 1904/2024, constatamos o primeiro problema em igualá-la a uma bancada coesa.

Fonte: elaboração própria. Dados da Câmara dos Deputados.

Nos dois gráficos que compõem a figura, acrescentei também o tamanho das bancadas dos partidos na Câmara para que se tenha dimensão do seu peso legislativo. Em relação à Frente Parlamentar Evangélica, destaco a pluralidade de sua composição. Ainda que prevaleça a presença de deputados associados a partidos de direita, há ainda membros oriundos do centro ou da esquerda. Isto torna difícil a tarefa de liderar essa frente parlamentar, principalmente sem controlar os mesmos recursos disponíveis às lideranças dos partidos e blocos partidários. Ratifica ainda a noção de que há diferenças consideráveis entre os evangélicos, que se refletem na preferência política de cada um, ainda que posições mais conservadoras sejam a tendência.

Por outro lado, a origem partidária dos parlamentares que assinaram o PL 1904/2024 é mais homogênea, sendo localizada ao centro (MDB, PSDB e PSD) e à direita (PL, Republicanos, União, PP e PRD) do espectro ideológico. O perfil se mantém se considerarmos as lideranças dos partidos ou blocos que aprovaram o REQ 1861/2024, que colocou a tramitação do referido projeto de lei em caráter de urgência: PL; Bloco União, PP, Federação PSDB e Cidadania, PDT, Avante, Solidariedade e PRD; e Bloco MDB, PSD, Republicanos e Podemos, com 95, 160 e 146 parlamentares, respectivamente.

Aparentemente, mais do que pertencer à religião evangélica, o que tem unido estes parlamentares são preferências políticas, sobretudo em pautas morais e de segurança pública, estas últimas com ênfase na repressão e punição de criminosos. Tal associação pode ser observada se considerarmos a tramitação da PEC 45/2023 (criminalização da posse e do porte de drogas) pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. A proposta, já aprovada no Senado Federal, foi relatada pelo deputado Ricardo Salles (PL-SP) na CCJ. Seu parecer foi aprovado pelos membros da comissão filiados ao: PL, União Brasil, PP, MDB, PSD, Republicanos, Podemos e Cidadania. Além disso, votaram, sem sucesso, pela rejeição do parecer parlamentares dos seguintes partidos: PT, PCdoB, PSOL, Avante, PDT, PSB, PSDB, PV e Solidariedade. Ou seja, novamente há um alinhamento entre partidos de direita e alguns de centro, com liderança do PL, principal opositor do governo e atual partido de Jair Bolsonaro.

O alinhamento de preferências políticas desses parlamentares fica mais explícito ao se comparar o posicionamento deles frente a uma pauta mais ideológica e outra mais pragmática. A seguir apresento a votação da Câmara em duas ocasiões. A primeira trata da manutenção ou não do veto do presidente Lula às partes da Lei 14843/2024 que proibiam as saidinhas (saída temporária para visita à família e para cursar supletivo), pauta vinculada à segurança pública; e a segunda refere-se à regulamentação da reforma tributária, de conteúdo administrativo e econômico e menos associado a questões morais ou securitárias. Para facilitar a visualização mantive apenas os votos sim e não, excluindo abstenções e ausências.

Fonte: elaboração própria. Dados da Câmara dos Deputados.

O perfil de votação contra as saidinhas é semelhante ao encontrado anteriormente. PL, União Brasil, PP e Republicanos a favor de uma política de segurança pública mais punitiva e sendo acompanhado por alguns partidos de centro como PSD, MDB e PSDB. No entanto, o quadro se altera ao analisarmos a votação da regulamentação da reforma tributária, com o PL ficando praticamente isolado em relação aos seus parceiros anteriores e partidos como PSD, Republicanos e MDB adotando o lado apoiado por partidos de esquerda e, consequentemente, do governo (PT). Cabe sublinhar que os partidos que mudaram de comportamento nas situações aqui expostas (PSD, Republicanos, MDB e até mesmo União Brasil e PP) possuem ministérios no Executivo e parecem condicionar seu apoio à governabilidade ao tipo de pauta em questão.

Com isso eu não tenho a intenção de reduzir a importância atual dos evangélicos –  sobretudo os neopentecostais – na política brasileira. Pelo contrário, o protagonismo deste setor é óbvio e, exatamente por isso, sua interpretação merece o devido cuidado. E o termo bancada evangélica não parece ajudar nesse esforço, uma vez que, por um lado, ele homogeneíza todos os evangélicos como fiadores da mesma pauta e, por outro, esconde que associada às demandas morais há também a agenda de política pública e que setores de outras religiões como a católica também se associam neste debate público. Aparentemente, o que temos hoje no Legislativo brasileiro são parlamentares alinhados ideologicamente e livres para atuar em suas pautas mais caras perante seus eleitores (moral e segurança pública), mas que, em casos de votações mais pragmáticas, retomam o comportamento de troca de apoio legislativo por ministério, abandonando seus parceiros de de preferência política e voltando a fazer parte do governo.