Joyce Luz

A convocação da influenciadora Virgínia Fonseca para depor na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga a promoção de plataformas de apostas reacende um debate fundamental sobre os limites entre liberdade individual, responsabilidade pública e moralidade cívica em sociedades democráticas. Em uma democracia, o espaço público é, por definição, um território de pluralidade e contestação — mas também de exigências normativas sobre o comportamento dos indivíduos que atuam como formadores de opinião.

A presença de Virgínia Fonseca na CPI tem significado simbólico. A influenciadora, que possui milhões de seguidores nas redes sociais, sobretudo entre adolescentes e jovens, foi chamada a explicar sua associação com plataformas de apostas que operam na fronteira entre o entretenimento e a exploração de comportamentos compulsivos. Nesse contexto, seu depoimento é menos sobre a culpabilidade legal e mais sobre o papel social que figuras públicas desempenham na normalização de práticas potencialmente nocivas à saúde financeira e mental de seus seguidores.

O vício em jogos e apostas, enquanto categoria comportamental e social, desafia as democracias modernas, sobretudo quando esse comportamento é estimulado ou promovido por figuras com grande capital simbólico. A glamurização das apostas em ambientes digitais transforma uma atividade arriscada em um estilo de vida aspiracional, descolando-a de seus impactos concretos sobre indivíduos vulneráveis. Isso é particularmente grave em um país como o Brasil, onde a educação financeira é precária e a ilusão da sorte fácil encontra terreno fértil.

A promoção desse tipo de conteúdo nas redes sociais esvazia o debate público ao deslocar a atenção das consequências sociais para o apelo emocional da experiência individual. Quando uma influenciadora como Virgínia Fonseca associa sua imagem a uma plataforma de apostas sem considerar os impactos de sua influência, testemunhamos uma forma de corrosão da ética pública. A ação, mesmo que legalmente permitida, pode ter efeitos colaterais profundos ao legitimar práticas que favorecem a dependência e a desorganização da vida cotidiana.

Mais do que um julgamento sobre uma pessoa específica, a audiência da CPI escancara uma contradição contemporânea das democracias de massa: a coexistência entre liberdade de expressão e um novo tipo de poder, difuso e privatizado, operado por influenciadores digitais. Se, por um lado, a democracia deve proteger a liberdade de expressão e de mercado, por outro, ela não pode abdicar da tarefa de proteger seus cidadãos — sobretudo os mais vulneráveis — dos efeitos de práticas publicitárias nocivas, ainda que essas se travistam de entretenimento ou autenticidade nas redes sociais.

A noção de moralidade cívica implica reconhecer que o exercício da influência, ainda que não institucionalizado, é um ato político. O “capital simbólico” acumulado por influenciadores como Virgínia Fonseca lhes confere poder de moldar valores, comportamentos e desejos. Em regimes democráticos, onde o poder deve ser constantemente legitimado pelo interesse público, o uso desse capital exige responsabilidade proporcional. Ignorar esse princípio é ceder a uma lógica de mercantilização radical da cidadania, onde tudo — inclusive o vício — pode ser transformado em nicho de mercado.

É legítimo que figuras públicas sejam chamadas a prestar contas quando suas ações têm repercussões sociais significativas. A CPI das apostas, nesse sentido, cumpre um papel pedagógico ao reforçar que a esfera pública digital não está fora do alcance da política nem da regulação democrática. Contudo, é preciso ir além da responsabilização individual e pensar em modelos institucionais capazes de enfrentar os desafios éticos que emergem na intersecção entre influência digital, consumo e saúde social.

Em tempos em que o vício é transformado em tendência e o lucro se sobrepõe ao cuidado com o outro, a democracia precisa ser relembrada de seu compromisso com a formação de cidadãos conscientes, e não apenas consumidores cativados. A moralidade cívica, longe de ser uma imposição moralista, é o elo que sustenta a convivência democrática, onde o direito à liberdade caminha lado a lado com o dever de responsabilidade.