“Nada justifica a desigualdade de gênero”?
Michelle Fernandez e Ananda Marques
“Nada justifica a desigualdade de gênero”. Essa frase representa o tom da cerimônia realizada no Palácio do Planalto para a celebração do dia internacional da mulher, no 8 de março. Nessa ocasião, o atual presidente da República, Lula da Silva, assinou atos que seriam enviados na sequência para o Congresso e decretos que fomentam a promoção de direitos das mulheres. Uma série de políticas públicas foram apresentadas com o intuito de combater a violência, assegurar proteção social e garantir igualdade de direitos entre homens e mulheres no Brasil, inclusive na ocupação da esfera pública. Em consonância com o discurso de posse, o presidente falou sobre temas como salários iguais e combate à violência.
As ações previstas estão distribuídas em quatro eixos. No eixo saúde são apresentadas ações como a distribuição de absorventes e a criação do Programa Nacional de Equidade de Gênero, Raça e Valorização das Trabalhadoras no Sistema Único de Saúde. No eixo do combate à violência temos a criação de mais Casas da Mulher Brasileira, recriação do programa “Mulher Viver Sem Violência” e ratificação da Convenção 190 da OIT, que amplia a definição de assédio moral e sexual. No eixo educação e renda temos a proposta de cota de 8% nas contratações públicas para mulheres vítimas de violência, o projeto de lei para combate à discriminação salarial, as vagas em cursos e programas de educação profissional e tecnológica para mulheres em situação de vulnerabilidade. E, de forma mais transversal, no eixo de ações de reparação e promoção da igualdade de gênero, temos a retomada da construção de creches, a licença-maternidade para mulheres do programa bolsa-atleta, editais para mulheres cineastas e escritoras, a criação da Política Nacional de Inclusão, Permanência e Ascensão de Meninas e Mulheres na Ciência, Tecnologia e Inovação e a criação do Dia Nacional Marielle Franco.
O Global Gender Gap Report do Fórum Econômico Mundial, cujo relatório de 2022 apresenta o Brasil como o país que ocupa a 94° posição no ranking de diferença de gênero, dos 146 países analisados. Nesse sentido, as ações anunciadas representam um avanço significativo para a agenda de políticas públicas para mulheres, principalmente quando analisamos o cenário de desmonte e retrocessos vivido pelo país nos últimos anos. Entretanto, frente ao debate levantado sobre igualdade de gênero na ocupação da esfera pública, é preciso se perguntar sobre os limites da atuação do Estado brasileiro na promoção dessa igualdade.
O debate sobre as origens da desigualdade de gênero está presente na Ciência Política há algumas décadas. As teóricas feministas constroem uma crítica sobre os limites da democracia representativa em incluir mulheres nos espaços de poder, tendo em vista a divisão sexual do trabalho, que se sustenta numa suposta separação entre público e privado numa definição do que é político. Como afirma Flávia Biroli (2016), a participação política de mulheres é limitada em decorrência ao acesso desigual a tempo livre e renda. É preciso, portanto, ampliar a concepção do que é político, de modo que as tarefas inerentes ao cuidado, historicamente responsabilidade privada das mulheres, seja reposicionado como pauta coletiva e portanto, pública, principalmente nas pautas que agravam as desigualdades e a exclusão de mulheres e demais grupos vulnerabilizados.
Nesse sentido, mesmo identificando a atuação do atual governo na construção de políticas que fomentem a igualdade entre homens e mulheres, sem enfrentar questões mais estruturais da sociedade, não conseguiremos levar e manter mulheres nos espaços públicos de poder. A pandemia da Covid-19 evidenciou, como aponta a cientista política Françoise Vergès (2020), as hierarquias sociais que dividem o mundo entre quem cuida e quem é cuidado. A partir dessa hierarquização, são as mulheres, principalmente mulheres racializadas, aquelas responsáveis pelas atividades de manutenção da vida. Portanto, para possibilitar a ocupação da esfera pública por mulheres, é fundamental que consideremos a existência das atividades de cuidado, que pensemos em alternativas de cuidado para além das mulheres (como a criação de creches e outros equipamentos públicos), que fomentemos a participação dos homens nessa dinâmica que tem sido absorvida majoritariamente pelas mulheres. Sem uma discussão sobre a divisão sexual do trabalho não vamos conseguir efetivamente inserir e manter mulheres nos espaços de poder.
Frente a fragilização das políticas para mulheres, de forma geral, durante o governo Bolsonaro, a recuperação do discurso que coloca a importância dessas políticas no centro do debate é, por si só, importante. No entanto, quando observamos as políticas para o fomento da equidade de gênero na ocupação da esfera pública, percebemos que a construção de políticas sem o reconhecimento da estrutura machista na qual estamos imersos torna o resultado dessas políticas inócuo. É fundamental que o governo e o Congresso Nacional considerem o debate sobre cuidado e sobre a sobrecarga de trabalho que recai sobre as mulheres na construção de políticas que fomentem o combate à desigualdade de gênero na ocupação de postos de poder.