Os “bestializados” da minirreforma eleitoral
Cláudio André de Souza
Ao perdermos entre nós a inteligência ímpar do historiador e cientista político José Murilo de Carvalho (1939-2023), me lembrei do quanto o debate sobre a instauração da República no Brasil ganhou novas interpretações com a publicação da sua tese de doutoramento, que virou livro na década de 1980 sob o título “Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi”.
O título não é para menos, trata-se de uma frase célebre de Aristides Lobo, um fervoroso defensor da República, ao afirmar que o povo não foi protagonista da instauração do novo regime, mas assistira a tudo bestializado, sem compreender o que se passava.
Mais uma vez, a Câmara dos Deputados operou um processo débil de diálogo com a sociedade civil sobre os caminhos em torno do aperfeiçoamento do nosso sistema eleitoral. Deixando para a última hora, facilita o “rolo compressor” a isolar os debates e a escuta do que pensa especialistas e pesquisadores no assunto.
Quem não lembra da proposta jocosa de trocar o sistema proporcional pelo famigerado Distritão? E a ideia suicida de combinar o voto dado na urna eletrônica com um outro em papel, uma espécie de recibo a ser depositado em uma urna paralela e física a receber votos impresso?
Como nos alertou há algumas semanas aqui neste blog a cientista política Lara Mesquita (FGV), não se trata de um “erro” o aperfeiçoamento do sistema eleitoral, mas já começamos errado ao insular uma discussão sem o devido cuidado em promover uma rodada ampla de debates com a sociedade, o que não cabe em um cronograma apertado de debate e deliberação para que seja sancionada pelo presidente Lula (PT) até o dia 05 de outubro, para que tenha validade nas Eleições de 2024.
Os pontos mais polêmicos em debate na Câmara dos Deputados envolvem a minimização da transparência partidária. As mudanças propostas alteram o prazo de inelegibilidade de políticos que perdem o mandato seguirá sendo de oito anos, mas a partir da perda de mandato. Atualmente, o deputado fica inelegível pelo resto do mandato e por mais oito anos seguidos. Ou seja, a proposta defende que políticos condenados por crimes comuns ficarão inelegíveis oito anos após a condenação. Atualmente, a inelegibilidade passa a contar já no cumprimento da pena e nos oito anos seguintes.
Outro perigo na esquina é a mudança quanto á prestação de contas ao se propor que não haverá mais a prestação de contas parcial em andamento nas eleições, mas há também em curso a mudança de proposta para que agentes públicos sejam condenados por improbidade administrativa desde que sejam comprovados ao mesmo tempo lesão ao erário e enriquecimento ilícito, um “abacaxi” jurídico que atrapalha a investigação e julgamento das malversações de recursos públicos.
A iminente aprovação da PEC da Anistia é um duro golpe na luta pela transparência partidária e na lei da Ficha Limpa. Ainda segue em debate até a próxima semana a ideia de flexibilizar as leis de cota para negros e mulheres, algo que enfraquece seriamente a nossa democracia, que segue sendo marcada pela escassez de representatividade das mulheres e de políticos negros que representem a luta antirracista nos parlamentos.
Desse jeito, mais uma vez nós seremos os bestializados e o Congresso segue vocacionado a virar as costas para a sociedade ao excluir a sociedade da participação qualificada em torno da agenda de aperfeiçoamento do nosso sistema eleitoral. Um caminho simples seria começar a debater a minirreforma a partir de abril de todos os anos ímpares e que se tenha uma rodada ampla de audiências públicas com os especialistas desta temática. Uma receita simples e democrática. Fica para a próxima!
Créditos da imagem: Lula Marques/Agência Brasil