Sociedade dummy: O retrocesso da liberdade
Leon Victor de Queiroz Barbosa
Ser livre é poder viver o que se é, como se é, exercendo com autenticidade a cidadania. Dizer o que quer, do jeito que quer a quem quiser não é liberdade, se estiver agredindo a outra pessoa. Liberdade de expressão não é liberdade de agressão. A mente humana é extremamente diversa e complexa e para compreendê-la é preciso muita empatia (às vezes consigo mesmo) e um bom processamento cerebral de informações. Na estatística chamamos de dummy (cuja tradução para o português é fictícia, manequim, simulado) as variáveis que só possuem dois valores: zero ou um. Captar a complexidade da realidade em apenas dois valores é ruim, pois o ideal é captá-la no seu nível mais desagregado, complexo, garantindo maior variabilidade.
Uma sociedade onde só há homens e mulheres heterossexuais, onde só pode haver filhos dentro do casamento é um exemplo de uma sociedade dummy. É que para muitas pessoas é difícil enxergar a realidade na sua forma mais complexa, diversa e mais bonita. A natureza é bela porque tem múltiplas cores, múltiplos animais com seus múltiplos comportamentos. A cor da luz solar no Brasil é diferente da cor da Europa. É o mesmo sol, mas é diferente. A cor do céu também varia, e é por isso que a beleza do arco-íris se tornou o símbolo da diversidade (sexual e afetiva).
Essas pessoas com dificuldades de compreender a complexidade das coisas também não conseguem entender as metáforas e simbologias de textos históricos, como a Bíblia. Pelo contrário, diante da angústia de não conseguir compreender o mundo, de só conseguirem vê-lo em preto e branco buscam justificativas obtusas lendo de forma incompleta e com interpretações convenientes os textos sagrados, transferindo para os outros a dor de viver em um mundo dummy, em variações de cinzas, sem cores, todos iguais e categorizados da mesma forma, como produtos em uma prateleira de supermercado.
Religião é para quem crê. Impor suas crenças às outras pessoas, impedindo-lhes de viver com autenticidade, impedindo-lhes de viver com a liberdade que lá no fundo os crédulos buscam, é um enorme retrocesso. Quando pessoas decidem se casar, é porque se amam. E isso para o mundo civil tem repercussões na herança, nos contratos etc. Não faz o menor sentido um seguimento religioso querer tolher as pessoas de se casarem com base no que acreditam conter na Bíblia. Pessoas de mesmo sexo que querem se casar, não estão a obrigar tal comportamento às pessoas que buscam se relacionar com o sex oposto. Se você não gosta do casamento gay, não vá a um.
A História se repete e aqueles que se dizem defensores da liberdade, na verdade querem tirar os obstáculos para tolher a nossa. O discurso é sempre assim, o da liberdade absoluta, o de poder fazer qualquer coisa. Depois começam a impor os valores estabelecidos, a perseguir quem não se molda à nova ordem. Buscam ideia de pureza moral, estigmatizando as pessoas diversas como se fossem sujas e não merecedoras de frequentar os mesmos espaços públicos. O nazismo sobrevive nas mentes daqueles que buscam o controle total, a liberdade total apenas para si e o controle para os demais, a estética austera, de poucas cores, de um símbolo único e um líder só.
Nosso país é uma grande mistura de povos, raças, cores e por que não, de gêneros, amores e afetos? A religião de cada um deve ser respeitada, mas o tolhimento de nossa liberdade em nome dela, jamais! A tentativa de proibir o casamento homoafetivo, que é materialmente inconstitucional pois o Supremo Tribunal Federal já decidiu pela prevalência do princípio da isonomia, da não discriminação e da dignidade da pessoa humana, sobre quaisquer outros dispositivos que possam tolher o casamento gay, seja na própria Constituição ou em dispositivos infralegais.
A atual tentativa de proibir as mais diversas expressões de amor de serem juridicamente estabelecidas é tão desprezível que sequer motivou as instituições de ingressar no STF com Ação Direta de Inconstitucionalidade para sustar o projeto de lei ainda no Congresso. Como é flagrantemente inconstitucional, é um desperdício de recursos públicos a sua discussão. Pior, gera ansiedade e angústia para os que já se casaram, seus entes queridos e amigos.
Depois que o conservadorismo obtuso perdeu a eleição presidencial e o conservadorismo pragmático cedeu às negociações, restou aos conservadores politicamente menos habilidosos institucionalizar a idade média. Que a diversidade de cores vença a monocromia, que a verdadeira liberdade supere o falso moralismo. Um país com tanta diversidade está condenado à mediocridade ao estabelecer padrões sociais fictícios na tentativa acalmar quem ainda vive dentro da caverna de Platão.