A inacreditável lei que pune quem tem fome
Carolina Corrêa
Aporofobia: sentimento de aversão aos pobres. Esse medo e rejeição à população que vive em situação de vulnerabilidade social caracteriza o Projeto de Lei 445/2023, recentemente aprovado em primeiro turno na Câmara de Vereadores de São Paulo. A proposta prevê uma multa de mais de 17 mil reais para quem doar alimentos aos moradores de rua sem licença, exigindo, entre outras coisas, a autorização da Secretaria Municipal de Subprefeituras e da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) para realizar essas doações.
Autor do projeto, vereador Rubinho Nunes (União Brasil) é o mesmo que, em 2023, tentou articular, sem sucesso, a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o padre Júlio Lancellotti e a Pastoral do Povo de Rua. Após pressão da sociedade civil e várias organizações e instituições que atuam nesse segmento, o vereador suspendeu a tramitação do projeto que multa as doações de alimentos, alegando a necessidade de aumentar o diálogo com diferentes campos da sociedade civil antes de dar continuidade a votação.
Todavia, mesmo suspenso, o simples fato de um projeto dessa natureza ter sido proposto no legislativo municipal e aprovado em 30 segundos, numa votação simbólica, sem debate, sem diálogo com a sociedade e registrando voto contrário apenas das bancadas do PT e do PSOL, diz muito sobre o impacto potencial de uma legislação municipal. Impor barreiras burocráticas para a doação de alimentos numa capital como São Paulo, incluindo multas exorbitantes, inviabiliza o trabalho de diversas entidades sem fins lucrativos e desencoraja a mobilização de voluntários. De acordo com o CadÚnico (dados de novembro de 2023), a cidade de São Paulo tem mais de 60 mil pessoas vivendo em situação de rua, enfrentando a fome como um desafio diário e persistente.
O trabalho voluntário que provê suporte aos moradores de rua supre uma lacuna deixada pelo Estado. Mais do que isso, a rede de solidariedade liderada por entidades e voluntários é crucial para o funcionamento da democracia – promovendo associativismo e capital social. Quando essas entidades se organizam logisticamente para oferecer ajuda humanitária, fortalecem redes de relacionamento social, promovem confiança mútua entre cidadãos e instituições, criam espaços seguros de diálogo, defendem direitos humanos básicos e, muitas vezes, empoderam grupos marginalizados.
Imagine se, no passado, esse mesmo projeto de lei tivesse sido aprovado e sancionado na cidade de Porto Alegre, proibindo e multando as distribuições de alimentos que não cumprissem uma lista de exigências burocráticas. Porto Alegre viveu, no mês passado, o maior desastre climático já registrado na região, deixando centenas de pessoas desabrigadas e dependentes do trabalho incansável de voluntários que, entre tantas outras coisas, doaram refeições e mantiveram os refugiados climáticos bem alimentados. Só a Cozinha Solidária do MTST doou mais de 3.500 marmitas por dia durante o período de cheias na cidade. Essa cozinha, vinculada ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, opera em Porto Alegre desde 2020, quando o movimento, respondendo à crise sanitária da pandemia, criou mais de 49 cozinhas pelo Brasil, inspiradas nas cozinhas comunitárias existentes há mais de vinte anos em suas ocupações.
O engajamento cívico em emergências, como o exemplo de Porto Alegre, ocorre de forma mais simples e organizada em regiões com estrutura de mobilização social estabelecida, ou seja, onde há entidades atuando permanentemente. A logística de doação de refeições, incluindo produção, ocupação de espaço físico e distribuição, não nasce da noite para o dia e requer conhecimento de campo.
O fato é que a existência de movimentos, entidades e grupos que combatem a fome permanentemente é vital para a sobrevivência de uma população marginalizada, que normalmente é invisível para muitos cidadãos, além de ser secundária na lista de prioridades do Estado. Essas redes, como demonstrado em Porto Alegre, são recursos primordiais em desastres ambientais e climáticos, oferecendo suporte e organização em emergências e em momentos em que a população precisa de ajuda imediata.
A segurança alimentar é um direito previsto na Constituição Brasileira. Comer e cozinhar são atos políticos, assim como o associativismo e a mobilização social. O projeto de lei discutido na Câmara Municipal de São Paulo fere esses princípios e abre precedente para que propostas similares sejam aprovadas em Câmaras e Prefeituras reacionárias pelo país. A repercussão negativa da aprovação do projeto e a mobilização social que o desafia são reações necessárias e urgentes. O posicionamento vigilante da população em relação ao legislativo, em todos os âmbitos, se faz cada vez mais necessário.