Os massivos protestos de outubro de 2019 no Chile sacudiram a “classe política” do país e colocaram todo o sistema político sob forte pressão. Os milhões que saíram às ruas para protestar contra a desigualdade social e contra os “abusos” dos poderosos colocaram em cheque as instituições que vinham em um espiral de rejeição pela população, os piores avaliados eram os partidos políticos e o Congresso.

A população passou a se organizar de forma horizontal em conselhos autoconvocados (cabildos), uma instituição que data do período colonial chileno e que atualmente tomou a forma de assembleias populares com deliberação cidadã autoguiada, onde se discutem os problemas públicos e as soluções possíveis. Foram centenas de cabildos reunidos em praças, parques, estações do metrô, igrejas e clubes esportivos em todo o país.

O resultado por parte da política institucional foi iniciar um processo constituinte para mudar a constituição vigente, promulgada durante a ditadura militar comandada por Augusto Pinochet. O principal defeito dessa Carta Magna era que submetia os sistemas públicos – educação, saúde e pensões – às lógicas de mercado, e tal arranjo institucional tornava difícil a transformação política desses assuntos, exigindo quóruns altíssimos para a aprovação de reformas e outorgando a uma minoria a capacidade de veto e de manutenção do status quo. Esta minoria sempre tentou bloquear transformações, e por vezes levou questões políticas ao Tribunal Constitucional que chegou a derrubar legislações já aprovadas, bloqueando o processo legislativo sob a alegação de inconstitucionalidade em matérias de lei.

O consenso da necessidade da mudança constitucional foi se formando quando a população começou a se organizar nos cabildos, e o presidente então propôs uma solução à questão constitucional: um congresso constituinte formado pela atual legislatura. A proposta foi rapidamente descartada pela oposição no Congresso. Assim, enquanto o Chile vivia outra noite de violência nas ruas os principais parlamentares da oposição e do governo se reuniram no antigo edifício do Congresso Nacional em Santiago, com uma dezena de deputados e senadores buscando selar um acordo para a mudança da constituição de Pinochet.

O resultado foi que depois de horas, na madrugada do dia 15 de novembro de 2019 o acordo foi assinado pelos partidos políticos mais importantes. A partir de então seria convocado um plebiscito com duas perguntas: a primeira perguntava sobre a preferência em ter uma nova constituição (Aprovo/Rejeito) e a segunda o tipo de órgão que escreveria a nova carta (Convenção mista – composta por metade dos integrantes eleita diretamente pelo voto e a outra com parlamentares em exercício – ou Convenção Constitucional – composta inteiramente por voto direto).

O acordo foi materializado em uma reforma constitucional, já que a atual Constituição não permitia sua mudança. A reforma foi proposta por uma comissão técnica com integrantes indicados pelos partidos políticos que assinaram o acordo. O conteúdo da reforma continha as normas para o plebiscito e algumas regras para a possível convenção: quórum de 2/3 para aprovação de artigos, impossibilidade de mudar o caráter de república democrática do país e o respeito aos tratados internacionais já ratificados pelo Chile. A reforma foi aprovada com amplo apoio em ambas as câmaras do legislativo, e o plebiscito foi convocado para o dia 15 de abril – data que sofreu mudança em virtude da pandemia de COVID-19. A nova data foi remarcada para 25 de outubro de 2020 e teve como resultado a opção “Aprovo” (a mudança constitucional) com 78,27% dos votos e a opção pela convenção constitucional com 78,99% dos votos validos.

O Congresso ainda discute algumas matérias sobre as regras da convenção, como por exemplo: em meados de 2020 foi aprovado que a convenção constitucional será paritária, tanto nas listas eleitorais como na composição do próprio colegiado. Será o primeiro órgão constitucional no mundo em ter a paridade de gêneros. Outros assuntos ainda não foram aprovados como: as cotas para as comunidades e população indígena do país e a discussão que ainda não passou no Senado sobre a facilitação da participação de independentes no processo. É papel do Legislativo dar a palavra final nesses assuntos enquanto as eleições dos constituintes se aproximam, em abril do próximo ano. Assim, diferente de outros processos constituintes convocados quase unilateralmente pelo Executivo em países da América Latina, no Chile o protagonista vem sendo o Congresso.