Sobre disciplina de corpos femininos no mês das mulheres
Marcela Tanaka
Março é conhecido como o mês da luta das mulheres. Para além do 8M, o mês inteiro traz sempre à tona a pauta pelo reconhecimento e retratação histórica das opressões que mulheres sofreram e sofrem em um ciclo sem fim. É sobre a luta pelo direito ao livre uso dos nossos corpos, e, evidentemente, pela não objetificação deles; é sobre direito de ir e vir, de falar sem ser interrompida, de representar e ser representada. É também sobre igualdade de gênero, equiparação salarial, antirracismo, combate às violências e reconhecimento intelectual. Infelizmente, foi também neste ano em que no mês que representa tantas lutas que um caso de assédio parlamentar foi julgado pelo Conselho de Ética da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo que culminou em um parecer, no mínimo, burlesco.
O caso da deputada Isa Penna (PSOL) que acusa o deputado Fernando Cury (Cidadania) por importunação sexual foi votado neste último dia 5 de março de 2021 resultando em um placar de 5 votos favoráveis e 4 contrários em relação à proposta de punição: 119 dias de suspensão de mandato e salário proposta pelo deputado Wellington Moura (Republicanos). Diferente do voto do relator do caso, Emidio de Souza (PT), que propunha uma punição mais contundente, o relatório aprovado e que agora segue para a apreciação no Plenário da Assembleia foi uma manobra que preserva não apenas um gabinete funcional de um mandato inexistente por completo, como foi também uma bela passada de pano para Fernando Cury. A imagem que fica é desgostosa: a ratificação de um comportamento inaceitável sem prejuízo substantivo algum para quem o comete.
De todo o caso, cabe dar nome aos bois. Os cinco votos a favor da “punição” de Fernando Cury veem da ala mais conservadora da ALESP. Especificamente, estamos tratando de Delegado Olim (Progressistas) e Adalberto Freitas (PSL) da ala militar; e de Alex de Madureira (PSD), Wellington Moura (Republicanos) e Estevam Galvão (DEM), representantes da bancada evangélica. Notadamente, dos três últimos citados, Alex de Madureira é o representante oficial da Assembleia de Deus – Ministério de Madureira, sucessor de Cezinha de Madureira, atualmente Deputado Federal, Wellington Moura é pastor e um dos candidatos oficiais eleitos da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Estevam Galvão, por outro lado, é protestante histórico, membro da Igreja Metodista.
Apontei a filiação religiosa destes três últimos deputados porque, ao salientar essa informação, o resultado da votação do caso de Isa Penna fica bem pouco surpreendente. Não porque professam a religião x ou y, mas porque são representantes de um projeto conservador que define em alto e bom som o lugar entendido como o lugar da mulher.
Jacqueline Teixeira em “A Mulher Universal”[1] retrata a forma como a IURD tem colocado a família no centro de sua teologia e, dentro da família, um lugar específico para a mulher. Essa mulher, a esposa, teria a tarefa de mediação da prosperidade da família, cabendo a ela a gestão dos filhos. Para isso, uma família próspera conjunta e individualmente, depende de uma vida conjugal favorável, que, por sua vez, depende da disciplina dos corpos femininos. Existe uma engenharia muito sofisticada para essa conformação de comportamentos: o Godllywood. Esse movimento voltado às mulheres iurdianas pressupõe o cumprimento de desafios que envolvem rotinas de cuidados de beleza, cuidados de si e dos outros, cujo objetivo é a criação e solidificação de hábitos e sentidos “femininos”.
Assim, ao revoltar-se com um comportamento invasivo e ter a audácia (contém ironia) de se fazer ouvir, a deputada Isa Penna evidentemente destoa desse ideal feminino e do lugar da mulher propagado por este projeto. O resultado final, diga-se de passagem julgado quase que exclusivamente por homens, mas definitivamente decidido por eles, foi o silenciamento de uma mulher que não faz parte desse imaginário coletivo. De todo modo, caberá ao plenário, o sentenciamento final não só do caso, mas a publicização do que se pensa sobre comportamentos masculinos e o que se pensa ser aceitável ou não sobre corpos femininos. E sobre qual “homenagem” nos será feita neste mês de março.
Por fim, uma nota: se for para postar sobre o dia 08 de março homenageando mulheres então responsabilizem seus colegas pelos atos cometidos. Estamos de olho[2].
[1] TEIXEIRA, Jacqueline. A Mulher Universal: corpo, gênero e pedagogia da prosperidade. Rio de Janeiro: Mar de Ideias – Navegação Cultural, 2016.
[2] Fontes das imagens: redes sociais dos deputados: em cima da esquerda para a direita: Alex de Madureira, Wellington Moura, Adalberto Freitas. Embaixo:Delegado Olim e Estevam Galvão (Acessadas em 11/03/2021).