A calculadora dos parlamentares
Humberto Dantas
Durante os debates da reforma previdenciária em 2019, sobre uma proposta mais incisiva e capaz de aliviar os investimentos públicos associados a tal questão, um deputado federal de São Paulo disse algo mais ou menos assim: “não podemos aprovar essa emenda constitucional do jeito que ela está, pois isso oferta a real possibilidade de o caixa do governo chegar a 2022 pleno, o que certamente reelegerá Bolsonaro. E não sei se queremos isso de forma tão fácil”.
Cabeça de parlamentar, em boa parte dos casos, funciona assim: ação pública e dinheiro público convertidos em votos. É uma forma de pensar, é uma calculadora que associa convicção, ação e conversão. Por vezes erram, mas também acertam. Esse tipo de gente que “vê voto em tudo” está no poder e vive estabelecendo estratégias e reflexões sobre os mais diferentes assuntos. Isso em qualquer país democrático do mundo, de forma mais ou menos explícita.
Atualmente, uma reflexão rigorosamente idêntica volta a circular no universo congressual brasileiro. Dessa vez, de forma tão escancarada, que a PEC dos Precatórios ganhou até um apelido que não deixa de lado a dimensão dessa calculadora: PEC da Reeleição de Bolsonaro. Mas por quê?
Simples: o governo busca aliviar em cerca de R$ 90 bilhões o orçamento da União para o pagamento da política de assistência social. Para tanto, arrefeceria o cumprimento de precatórios em 2022, um calote de ao menos um ano, e ignoraria parte das leis de rigor fiscal. A justificativa é muito impactante, tanto em termos sociais, quanto em termos econômicos e eleitorais: o brasileiro está passando fome, a miséria se alarga, a inflação carcome, o desemprego assombra e é a hora de entrar em campo para ajudar o cidadão comum. Governo liberal à parte, é isso que certamente qualquer presidente faria, mas não sem antes passar pelo Congresso Nacional.
Troque as pilhas e se prepare para intensificar o uso da calculadora. Na Câmara dos Deputados, onde Arthur Lira (PP-AL) faz conta de cabeça e controla a distribuição de benefícios, o projeto passou em dois turnos, e já tratamos dessa tramitação aqui no blog algumas vezes nas últimas semanas. Não sem garantir aos deputados que parte desses quase 100 bilhões de reais também serão utilizados para o pagamento de benefícios locais em redutos eleitorais. O apelido “PEC da Reeleição de Bolsonaro” é injusto com o presidente, por pior e mais mal-intencionado que ele possa ser no comando do país. A PEC nunca passaria pelos deputados se também não simbolizasse a esperança de reeleição de muitos daqueles que votaram pró-Planalto – sem contar aqueles que têm sensibilidade social e entendem a necessidade do instante, mesmo duvidando que esse seja o embrulho do presente, e não o conteúdo da caixa. A PEC, na cabeça dos convictos da Câmara, não reelege só Bolsonaro, mas eles também. E se der errado para o Planalto, dando certo para o Centrão, que se deitará com o próximo presidente, é o que vale.
Enganam-se aqueles que afirmam que o “orçamento secreto” esconde o “parlamentar benevolente” da sociedade. Pode sumir aos olhos da grande imprensa e da opinião pública em sentido mais amplo, pode burlar as ferramentas mais gerais de transparência, mas na ponta o prefeito sabe quem precisará apoiar em 2022, e as inaugurações e eventos festivos terão exatamente os “agente secretos” responsáveis pelas distribuições sorrindo e discursando. Algumas empresas, contratadas para parte dessas intervenções locais também saberão com quem conversar no ano que vem, e muitos saberão como elas foram contratadas.
Mas voltemos ao orçamento, pois a calculadora continua funcionando. A PEC vai para o Senado, onde dois terços dos representantes, em tese, não precisariam se preocupar com as eleições de 2022, pois possuem mandato até o começo de 2027, e só terão suas cadeiras colocadas nas urnas em 2026. É óbvio que, a despeito disso, agente político não deixa o campo por nada. E se tem jogo, ele está pronto para atuar. Assim, o que estará sobre a mesa na passagem da PEC dos Precatórios pela “casa revisora”? Isso Luciana Santana tentou adiantar no texto de terça-feira.
Retomemos às reflexões na Câmara dos Deputados. Isso porque durante a tramitação da PEC no começo do mês assistimos deputados federais sendo exonerados de cargos no Poder Executivo dos estados, de alguns municípios e da União para voltarem à Brasília, garantindo votos favoráveis ou contrários ao tema de acordo com estratégias partidárias. Aqui percebemos o custo que as coligações em eleições proporcionais, ainda válidas em 2018, têm para o país. No Ceará, por exemplo, um parlamentar do PDT em exercício de secretaria estadual estratégica deixou o governo, voltou para Brasília, apenas para empurrar para fora da Câmara um suplente seu que é do: DEM. Isso mesmo. Pois bem, mas não é apenas sobre isso que estamos falando.
Final de ano e é tempo de destinar emendas parlamentares. E o que fazem aqueles que pediram voto, foram eleitos e ignoraram a contratação popular em nome de uma boca considerada mais atraente em estruturas do Poder Executivo? Acordam com seus chefes – prefeitos, governadores, ministros ou com o presidente – que precisam voltar pra Brasília, ou mais especificamente para a Câmara. Empurram seus suplentes para fora, sentam-se na cadeira de deputado, definem suas emendas, beneficiam aqueles que desejam com vistas ao pleito de 2022, e voltam para suas estruturas executivas no instante seguinte – onde ficarão, provavelmente, até o prazo de desincompatibilização do ano que vem. Preste atenção no quanto essa prática atesta o caráter individual de um mandato obtido sob cálculo coletivo, desde a votação até a suplência, aprimorado com o fim das alianças proporcionais que começa a vigorar no próximo pleito para as disputas estaduais. Mais uma vez, nitidamente, a calculadora opera a todo o vapor. E tem gente que afirma que não existe relação entre destinação de emenda e interesses eleitorais. Em que mundo vivem?