Marcela Tanaka

Programada para hoje, dia 16/12, a posse do novo Ministro André Mendonça no Supremo Tribunal Federal tem sido considerada a pá de cal na laicidade do Estado brasileiro. Contudo, a questão não é essa, o problema é que o Brasil nunca foi laico, André Mendonça não é o primeiro evangélico a ocupar um cargo no STF e, principalmente, os neopentecostais não respondem sozinhos à tradicional confusão que os brasileiros fazem entre religião e Estado.

Uma das prerrogativas fundamentais das democracias é a capacidade dos diferentes poderes atuarem como um sistema de freios e contrapesos. Longe de ser uma concepção moderna, a ideia de um sistema de poderes separados passível de controle uns em relação aos outros remonta aos trabalhos de Montesquieu no século XVIII. O caso da nomeação de Ministros para a Suprema Corte brasileira segue essa lógica.

Detentor do poder de indicação, o Executivo seleciona um nome viável que então necessita da aprovação do Senado Federal. O Legislativo tem, então, a função essencial de conduzir o processo de sabatina. Primeiramente, o processo passa pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), cujo papel é realizar o escrutínio do nomeado e avaliar sua capacidade técnica para assumir o cargo. Aqui, são necessários 11 votos para sua aprovação. Em seguida, o plenário do Senado Federal também precisa aprovar, por maioria simples, a nomeação; logo, 41 votos. O placar, como é sabido, foi favorável à aprovação de André Mendonça, ainda que tenha sido um dos mais apertados dentro dos atuais Ministros da Corte.

Só que para além da camada processual da aprovação de um novo Ministro, existe também a camada política dessa nomeação. Grosso modo, para o Executivo, é o momento de garantir um aliado dentro da Suprema Corte e sinalizar para sua base uma posição política. O caso de André Mendonça não é diferente. O Presidente da República, depois de uma longa negociação, conseguiu a altos custos a aprovação de um nome “terrivelmente evangélico”. Ao mesmo tempo em que se aproxima de seu eleitorado mais cativo, sofre duras críticas sobre sua escolha. Dentre elas, a mais incisiva é sobre a quebra da laicidade do Estado.

Mas de que laicidade estamos falando? Dentro do próprio design do plenário do Supremo, no mural de mármore criado por Athos Bulcão existem adornos triangulares. Exatamente iguais, representariam a concepção de que nenhum homem seria maior que os demais. Dentre eles, acima do brasão de armas existe um que é propositalmente maior que os demais. O significado seria de que a Justiça deveria se sobrepor aos homens. Contudo, dentro deste exato adorno vive um crucifixo, obra de Alfredo Ceschiatti, que também assina a estátua que fica em frente ao prédio, A Justiça.

A fixação do crucifixo nos anos 70 no lugar que representaria o papel da Justiça diz muito sobre a estética cristã brasileira, mas também reforça o argumento estudado em profundidade pelos cientistas da religião que demonstram que nunca houve o conceito de laicidade na concepção do Estado brasileiro. Aliás, concebida como “laicidade à brasileira” aponta que o processo de diferenciação das esferas sociais nunca teve o componente de retração do religioso para o âmbito privado. A exemplo disso ficam não só o crucifixo do STF, mas a longa lista de estátuas e imagens religiosas espalhadas em prédios públicos. Em síntese, a laicidade estatal brasileira nunca teve força normativa, nem histórica e nem cultural.

O que é espantoso, portanto, não é o fato de que André Mendonça passe a ocupar um assento na Suprema Corte, mas que esteja sendo debatido a perda de algo que nunca existiu. A verdadeira discussão gira em torno da construção do Estado laico concebido a partir da secularização de suas instituições. A aprovação do nome do novo Ministro diz muito mais, portanto, sobre o atual momento de representatividade das nossas casas Legislativas e sobre a força social que um segmento religioso específico – e longe de ser unânime – tem angariado dentro da política. Logo, diz muito menos sobre a laicidade estatal, visto que, do ponto de vista histórico e cultural não surpreende a ninguém essa nomeação.

É evidente que a aprovação do novo Ministro tem consequências importantes sobre decisões que afetam a vida de toda a população, mas esse barco já partiu faz tempo. Bem antes de 2018. O que a ascensão de um novo Ministro evangélico ao STF pode nos ensinar é que o governo ainda tem muito combustível para gastar e que seu apoio no Legislativo ainda tem força suficiente para abocanhar uma das cadeiras mais importantes do País. E isso sim é assustador.

Créditos da imagem: Daniel Estevão/AscomAGU