Enéas Carneiro e o paraíso das coincidências
Humberto Dantas
Já parou para pensar? Se Enéas Carneiro não tivesse morrido em 2007, seu discurso radical e intenso encontraria eco hoje. Se ele reclamava que tinha poucos segundos de TV para disseminar pensamentos intensos em campanhas eleitorais, faria facilmente muito mais sucesso que alguns gurus da direita extremista nas redes sociais. Mas isso Enéas não viu nem viveu.
A despeito de ter nascido em 1938, e de no ano que vem completarmos 85 anos de tal data, certamente uma associação dele com Jair Bolsonaro seria algo muito forte e simbólico para determinados segmentos da sociedade. Ambos conviveram por alguns anos na Câmara dos Deputados, e existem fotos e registros de alguns encontros entre eles. Tenho conhecidos que passaram instantes com o finado médico, e só me resta saber se ele, absolutamente intolerante com a falta de inteligência, teria paciência com o esperto Bolsonaro – que já se disse inspirado pelo ex-colega de parlamento e usa parte de suas ideias em alguns discursos e posicionamentos.
Enéas era presidente do Prona, e coincidentemente a fusão com o Partido Liberal em 2006 deu origem ao Partido da República (PR). O PR voltou a se chamar PL em 2019, sob os mesmos dirigentes e pessoas que o levaram do colo de Lula em 2002 ao mundo bolsonarista em 2021. Enéas vivo, fico pensando se seria presidente com Bolsonaro de vice. Se seria o vice dos sonhos do capitão já em 2018. Se seria ministro da Saúde em meio à pandemia. Ou trabalharia na Defesa, dada sua tara pela bomba atômica e apreço por posições ultranacionalistas.
Enéas em 2002 foi eleito deputado federal com mais de 1,6 milhão de votos pelo estado de São Paulo. A marca só seria superada, coincidentemente, por Eduardo 003 Bolsonaro em 2018. À ocasião do médico ultra-votado a regra era clara: quociente eleitoral superado individualmente, os votos adicionais eram transferidos para o partido sem qualquer exigência de performance por parte de colegas de legenda para a ocupação de uma cadeira pelo sistema proporcional. O Enéas dos quase 1,6 milhão de votos só utilizou 300 mil, o resto fez outras cadeiras no partido.
Atualmente, numa reforma apelidada de modo descompromissado com a história, criamos a “Lei Tiririca” – que exige que para se beneficiar das votações expressivas de um puxador de votos, qualquer eleito tenha ao menos o equivalente de adesões, em si, a 10% do quociente eleitoral de uma dada realidade estadual (deputados) ou municipal (vereadores). Francisco Everardo, digno palhaço na TV, coincidentemente eleito três vezes pelo PR a partir do pleito de 2010, teve 1,2 milhão de votos em sua primeira eleição. Mas todos os colegas de coligação, coincidentemente formada por PR e PT, que contava ainda com PRB (hoje Republicanos) / PC do B / PT do B (atual Avante) – à época em que acordos dessa natureza ainda eram celebrados nos pleitos proporcionais – tiveram votações expressivas. O último eleito nesse bloco teve quase 100 mil votos. Assim, a mudança devia atender pelo nome de “Lei Enéas”, ou no máximo “Lei Russomanno”, coincidentemente apoiado por Bolsonaro em 2020 para a Prefeitura de São Paulo. Quando a medida foi aprovada, em 2015, ele era o único deputado federal que havia trazido em sua chapa um colega com “baixa votação”.
Com Enéas tudo isso foi diferente em 2002. Ele puxou cinco deputados federais, toda a chapa, com votações pífias. Veja só: Amauri Gasques teve pouco mais de 18 mil votos, Irapuan Teixeira, Elimar Damasceno, Ildeu Alves de Araújo e Vanderlei de Assis de Souza entre cerca de 300 e 1.000 votos cada. Isso mesmo: menos de MIL votos. Ou seja: menos de 0,4% do quociente eleitoral. Em 2014, eleição que escolheu os parlamentares responsáveis pela “Lei Enéas”, apenas Fausto Pinato, na carona de Russomanno no então PRB, ficou abaixo dos 10% do quociente eleitoral em todo o Brasil – interessante a criação de uma regra que abatia UM caso, mas em 2018 ela foi capaz, coincidentemente, de conter o PSL em diversos lugares do Brasil na onda bolsonarista de políticos débeis puxados por expoentes radicais.
Pois bem. Dito tudo isso, onde andam essas figuras eleitas abaixo do radar da “Lei Enéas”? Fausto ainda é um político jovem, tem atualmente 44 anos, é de 1977. Em 2014 ainda trafegava na casa dos 30 e tantos anos. Ele soube aproveitar politicamente o mandato de deputado federal. Saiu do PRB pela exceção federal à lógica municipal da janela de troca partidária em direção ao Progressistas. Coincidentemente, foi Bolsonaro pulando do PP para o PSC, e ele do PRB para o PP. Em 2018, o demonstrativo de força: mais de 118 mil votos, ou seja, quase multiplicou por dez a chance que teve em 2014. Mas e o pessoal de Enéas? Dos cinco puxados, três eram médicos, dois inclusive do Rio de Janeiro – de onde também vinha Enéas. Amauri é facilmente encontrado na internet como cardiologista, e seu nome apareceu no famoso escândalo dos sanguessugas. Em 2006 tentou se reeleger, coincidentemente pelo PL, mas teve só 14 mil votos. Com mandato na mão, quatro anos de experiência e menos quatro mil votos.
Irapuan, professor gaúcho, tinha sido candidato a vice-presidente na chapa de Enéas em 1998, e já havia tentado outros cargos nos anos 90. Se em 2002 foi eleito com menos de mil votos, em 2006, coincidentemente, estava no PP – tendo sido chamado de traidor por Enéas – e aumentou de forma expressiva sua votação. Quase bateu dois mil eleitores, o que me parece uma aberração para quem cumpre um mandato e tem formas estratégicas, lícitas e inteligentes de estabelecer redes e conquistar espaço. Ficou quatro anos na Câmara e seu currículo, repleto de títulos no campo da filosofia e da teologia, foi triturado por reportagem da Revista Época. Paciência. Não foi o primeiro, e não seria o último, mas diante de tantos casos recentes tinha potencial para estar no atual governo. Desfiliou-se do PP em 2018.
Elimar Damasceno não é traidor. Pelo contrário. Médico, fundou o Prona, cumpriu o mandato pelo partido, tentou se reeleger em 2006, teve menos de 2 mil votos e foi absorvido no gabinete de seu líder maior, onde ficou até o falecimento de Enéas.
Ildeu Araújo teve problemas desde o início do mandato. Fundador do partido, transferiu seu título do Distrito Federal para o interior de São Paulo apenas para disputar a eleição. Com dificuldades para comprovar domicílio, enfrentou processos até 2004, mas seguiu adiante. Coincidentemente, juntou o que existe de pior nas descrições dos colegas: foi tratado por traidor por trocar o Prona pelo PP, e apareceu em escândalo de compra de insumos de saúde que arrolou dezenas de parlamentares. Em 2006 fracassou nas urnas, mas teve dez vezes mais votos, chegando a quase 4.000 eleitores.
Por fim, o menos votado de todos. Vanderlei de Assis de Souza nem tentou a reeleição em São Paulo. Coincidentemente acusado de problemas com domicílio eleitoral, enfrentou processos e no primeiro mandato voltou com seu título para o Rio de Janeiro – mesmo representando São Paulo. Seguindo colegas, coincidentemente traiu Enéas, foi para o PP e se envolveu em escândalos de corrupção associados à máfia dos sanguessugas. Na internet aparece com carreira em organismos fluminenses de saúde e ainda exerce a carreira de médico.
Volte ao começo do texto: com uma turma tão apurada assim, fico imaginando quem efetivamente era Enéas e quantos escândalos teriam aparecido se ele tivesse vivo, ao lado de Bolsonaro, no controle do país. Coincidentemente, penso quantos desses nomes acima estariam unidos pelo Brasil, pela pátria, contra a corrupção e pela família. Bolsonaro, a despeito de todos esses personagens, segue ileso, sem um caso de corrupção. Ahã. Seus amigos que o digam…
Créditos da imagem: Reprodução redes sociais de Bolsonaro.