*Texto escrito por Isabela Rahal, mestre em desenvolvimento econômico e político pela Universidade de Columbia e atualmente é coordenadora legislativa no Congresso Nacional. É também aceleradora da Rede Legisla Brasil.

 Como alterações regimentais e atropelos afastam cada vez mais o Congresso da população e colocam em xeque a nossa democracia.

É de conhecimento geral que o Presidente Bolsonaro e seus ataques às instituições enfraquecem a nossa democracia. Nós conhecemos essa ameaça e a estamos enfrentando desde as eleições de 2018. O que não está evidente para a sociedade, no entanto, são outras ameaças, que vêm ocorrendo de maneira mais discreta, porém não menos preocupante, no âmbito do Congresso Nacional. São atropelos, desrespeitos aos procedimentos e mesmo à nossa Constituição, mas que passam despercebidos em meio à grande quantidade de notícias que a pandemia nos traz.

Em meio à sessão desta última quarta-feira (12), o Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, comentava, de bom humor, que aquela seria a última votação de um requerimento de votação parcelada, ou seja, que permitisse a análise ponto a ponto de um projeto. Infelizmente, ele estava certo. Isso porque, nesta semana, com seu apoio, a Câmara dos Deputados aprovou uma das maiores mudanças em seu regimento interno desde a redemocratização. A alteração do regimento retirou possibilidades importantes de diálogo e convergência, e facilitou ainda mais as “tratoradas” que, hoje, já aconteciam em maior frequência por conta da pandemia e do sistema de votações remotas. Nosso regime democrático foi desenhado para que diversos setores da sociedade sejam ouvidos e representados, e as mudanças feitas colocam essa representatividade em xeque.

Apesar de mais recente, esse não é o único exemplo de atropelo. Talvez mais sérias sejam, na verdade, as alterações feitas em nossa Constituição a toque de caixa. Um exemplo é a Emenda Constitucional nº 109, que aprovou recursos para a prorrogação do Auxílio Emergencial mas também congelou salários e fez alterações permanentes. A Emenda foi aprovada em menos 72 horas, sem uma Comissão Especial para debate ou emendas. Foram bilhões de reais movimentados, milhões de brasileiros afetados – e, ainda assim, poucos tiveram acesso ao debate. O mesmo ocorre com outras proposições: Medidas Provisórias passaram a ter apenas 48 horas para emendamento. Comissões foram encerradas, ou suspensas. Antes de ser alterado, o regimento interno da casa foi ignorado, com interpretações questionáveis por parte da Presidência da Câmara.

É necessário reconhecer que o Congresso Nacional preencheu, em partes, um vácuo importante no combate à Covid-19. No entanto, sob a justificativa da urgência que a pandemia nos pede, o Congresso vem fragilizando processos extremamente caros à participação social e à nossa democracia como um todo. Até onde avançamos nas mudanças de regras, e até onde foi criado um precedente perigoso? Se alterar a nossa Constituição se tornou tão corriqueiro, o que impediria o Congresso de aprovar uma alteração que ameace a independência dos três poderes? Que ameace o judiciário? Que aumente a impunidade em casos de corrupção de parlamentares (como quase ocorreu há poucos meses)? O mesmo plenário remoto que possibilitou, há um ano, a aprovação acelerada do Auxílio Emergencial, também aprovará uma reforma eleitoral.

Steven Levitsky, em Como as Democracias Morrem, demonstra que democracias não são destruídas de um dia para o outro. É necessário persistência, ataques constantes e recorrentes, mas que por vezes passam imperceptíveis. E quando percebermos, nossas liberdades já nos terão sido retiradas. É essencial enxergar que os atropelos advindos do Congresso Nacional, nessa nova gestão, mais do que medidas temporárias, são um ataque à democracia. Os mecanismos de funcionamento do Congresso são os instrumentos que temos para lutar pelos nossos direitos. É fundamental reconhecer esses riscos, entendê-los, e corrigir os rumos do caminho perigoso que a nossa democracia está sendo forçada a percorrer.