HUMBERTO DANTAS

 

Na próxima semana terei a honra de abrir a Semana Acadêmica da Assembleia Legislativa do Estado do Paraná com palestra intitulada “O desafio de equilibrar o rigor acadêmico e o pragmatismo político – onde convergir?”. Alguns pontos merecem destaque acerca do convite e do local, para além da abordagem.

Quem está realizando o evento é a Escola do Legislativo do Paraná. A Constituição Federal de 1988 trata especificamente da necessidade de o poder público brasileiro, em suas distintas esferas de poder, ter Escolas de Governo que primem pela educação, atualização, preparo e fortalecimento dos servidores públicos em geral. Assim, as tradicionais escolas ligadas ao Poder Executivo, bem como organizações desse tipo no Judiciário, cumprem papeis essenciais para o fortalecimento das máquinas públicas. Complementa tal realidade as escolas legislativas, mas estas findaram adquirindo um papel adicional muito importante ao longo dos últimos mais de 30 anos. Presentes em cerca de 300 cidades do país, em todos os estados da federação e nas duas casas do Congresso Nacional, bem como em diversos tribunais de contas, as tarefas de tais escolas vão muito além de capacitar servidores – o que já é valioso e desafiador.

O seminal livro de Rildo Cosson sobre tais organizações as chamam de “Escolas de Democracia”, ou seja, para além de programas voltados para um poder que em virtude de estruturas politizadas passam por profundas e desafiadoras transformações em seus quadros funcionais a cada ciclo eleitoral que demandam cursos de naturezas diversas, as escolas do parlamento atendem a cidadania em geral. Não são poucas as instituições desse tipo que atraem para o Legislativo, poder que melhor simboliza a democracia, a pluralidade ideológica e a diversidade de posicionamentos nas sociedades, uma quantidade expressiva de eleitores que buscam compreender melhor valores e fundamentos atrelados à educação política. Assim, em primeiro lugar, para mim, atender a uma escola do parlamento significa atuar próximo do fortalecimento da democracia. Como professor e palestrantes de diversas organizações desse tipo ao longo dos últimos 20 anos e ex-presidente da Escola da Câmara Municipal de São Paulo, só posso agradecer e expressar orgulho.

Mas para além de admiração e do espaço ocupado nas escolas desse tipo, a vida me levou para a academia. Graduado em ciências sociais, mestre e doutor em ciência política e pós-doutor em administração pública, me orgulho dos 25 anos de docência universitária em graduação e pós-graduação, bem como da realização de pesquisas acadêmicas desde os anos 90.

Assim, diante dessa convergência curricular, que talvez justifique o convite, a abordagem precisa considerar a necessidade de se falar para dois públicos que por vezes têm dificuldades de se reconhecer e aproximar: servidores do parlamento e acadêmicos. Antes de tratar alguns pontos essenciais dessa relação, no entanto, uma ressalva importante está atrelada à ideia de que muitos funcionários do Poder Legislativo, efetivos ou indicados, possuem sólidas carreiras acadêmicas. Na Câmara paulistana, para efeito de projetos que desejávamos levar adiante na escola que presidi sob o protagonismo acadêmico de pessoas da própria Casa, não foi difícil encontrar diversos pesquisadores atuando em diferentes departamentos – dos mais técnicos aos mais políticos – com sede de ensinar, compor redes e investigar.

Na mesma toada, mas em mão diferente, a academia tem diversos alunos e egressos que atuam, ou atuaram, em sedes do parlamento, e carregam experiências práticas que transcendem, ou complementam, o olhar teórico sobre tal poder. Assim, o primeiro ponto: é necessário jogar luz onde a realidade faz essa agenda convergir, compreendendo a partir de quais iniciativas é possível formatar redes de complementariedade que unam tais pontas.

Para além disso, onde podemos contribuir para tal aproximação? Olhando para os parlamentos as respostas são simples: acadêmicos têm nas escolas legislativas espaço de sobra para decodificarem seus achados em ações formativas que contemplem do simples cidadão que deseja entender o básico da política em um ganha-ganha perfeito, ao mais sofisticado debate em determinadas instâncias e situações. Para tanto, o pesquisador precisa “aprender a falar a língua do povo”, na Casa do Povo, e o parlamento deve valorizar o que a academia tem a oferecer ao fortalecimento da democracia, da cidadania e do saber. Exemplos não faltam sobre os espaços ideias para isso no Legislativo: as comissões temáticas, as comissões de inquérito, as audiências públicas, os espaços de debate e formulação de discursos nos gabinetes podem, e devem sempre, se servir do saber acadêmico aplicado a desafios reais atrelados à formulação, fiscalização e aprimoramento de políticas públicas. Isso a academia oferta, desde que tais pesquisadores compreendam o sentido do parlamento. O que devem dizer? Quais os limites de profundidade? Para qual público? Com base em quais desafios?

Respostas a tais pontos são encontradas na própria academia. Em sua tentativa de compreender algo sobre ética nas relações entre Estado e sociedade, partindo da posição do universo público e de seus servidores, Max Weber dizia ser o parlamentar o ator mais puro da convicção. Em contrapartida, o estatutário é o agente da responsabilidade. Assim, quando vai ao Legislativo, o pesquisador deve ter em mente uma só coisa: ele está falando numa arena de convicções. E a partir disso, deve cuidar para não subverter algo que Weber defende em outro trabalho, mais associado às verdades científicas: a ciência se caracteriza por aceitar que “verdades” são finitas, que o conhecimento se renova e reinventa, e que escolhas temáticas podem até ser subjetivas, mas os resultados atrelados à aplicação de métodos válidos são essenciais para a consolidação de achados aceitos.

Perceba: acadêmicos procuram verdades científicas forjadas na aplicação de métodos, enquanto políticos, sobretudo parlamentares, se ancoram em visões de mundo e defesas de posições ideológicas. Algum problema nisso para a relação entre ambos? Sim e não. Um exemplo: o cientista é um traidor da verdade em nome de novos achados, enquanto políticos podem ser afeitos a posicionamentos menos flexíveis e avessos ao tempo. Percebe? Mas tem mais: as linguagens são distintas, sobretudo numa realidade pouco afeita às verdades científicas que exigem atualização e aprofundamento. Isso inviabiliza o diálogo? Nem sempre, sobretudo quando o cientista e o político estão dispostos a se tornarem flexíveis em suas irredutibilidades.

Tudo isso parece simples, e por vezes óbvio. Assim, por que não ocorre? Primeiro porque estamos numa era de pós-verdade. Segundo porque o acadêmico por vezes carrega arrogância e inflexibilidade na forma de falar e aceitar posições que não estejam sob o seu “nível acadêmico”. Terceiro porque por vezes as verdades que mudam discursos incomodam o universo político, que pode soar arrogante por ter poder e se sentir afrontado. Quarto porque nem sempre tudo o que o pesquisador deseja está ao alcance das mãos, e nem sempre o que o político quer dizer a ciência pode provar. Quinto porque os tempos nesses ambientes são diferentes. Sexto poque interesses distintos estão em jogo, sendo necessário alinhamentos e arrefecimentos de preconceitos de ambas as partes. Sétimo porque falta rigor acadêmico a parte dos políticos e sensibilidade política a muitos acadêmicos. Diante de tudo isso, e de mais elementos que poderiam ser trazidos, um espaço chamado escola do parlamento parece ter função estratégica essencial: associar academia e parlamento, servidor e pesquisador. Isso na escola do Paraná é nítido, por exemplo, em um evento como este que participo, bem como na sua revista acadêmica, entre outros bons exemplos e iniciativas que buscam atrelar mundos muito mais convergentes do que algumas interpretações apressadas e preconceituosas possam imaginar.

Créditos na imagem: Pedro de Oliveira/Alep